“É preciso uma vila para cuidar de uma criança”.

O tão conhecido ditado nigeriano embute uma verdade simples: nós, humanos, somos seres sociáveis, acostumados há milhares de anos a viver em comunidade. Isso significa proteção, assistência, colaboração – e também obrigações compartilhadas, da divisão do trabalho à criação dos filhos.

O ditado me veio à mente enquanto escutava o primeiro episódio do podcast da ex-primeira dama dos Estados Unidos, Michelle Obama, disponível no Spotify. No capítulo em que trata do nosso senso de pertencimento e relação com a pátria, ela conversa com o marido, o ex-presidente Barack Obama, sobre como o mundo mudou desde quando eles eram jovens, em direção à uma sociedade mais individualista, menos preocupada com o que acontece com o outro. Ou com sua comunidade. 

Michelle relembra que, quando criança, em um bairro de classe média baixa de Chicago, as mães que trabalhavam eram assistidas, seja na tarefa de ficar de olho nas crianças na rua, seja nas reuniões de pais e mestres na escola, pelas outras mães, que ficavam em casa. As relações de consumo também eram diferentes – “we lived small”, o que em tradução literal pode dizer que eles vivam de forma simples. À medida que “ter” passou a ocupar um papel preponderante em nossas aspirações, o eixo parece ter se deslocado da vontade de impulsionar toda uma comunidade para a preocupação exclusiva com cada indivíduo. A comunidade, se não morreu, deixou de ser elemento central na vida das pessoas. 

Duas leituras recentes que me marcaram também tratam do assunto. No excelente As Alegrias da Maternidade, a escritora nigeriana Buchi Emecheta conta a história de Nnu Ego, filha de um importante líder tribal. Depois de um casamento malfadado, por sua incapacidade de gerar filhos, ela é enviada para a capital para se casar com Nnaife Owulum. Entre os muitos choques que a mudança lhe causa, um dos principais é a dificuldade de se ver sozinha em uma cidade em que tudo custa: aluguel, alimentação, educação, sem ter uma rede de apoio que lhe permita trabalhar e criar os filhos. Em sua aldeia, Nnu Ego encontraria amparo emocional e material, mas a Nigéria do início do século XX é um país em transformação, com novos hábitos trazidos pelos colonizadores em conflito com os antigos costumes das zonas rurais, em uma conta que não fecha para a população pobre do país. Sem esse alicerce fundamental, cabe à Nnu Ego uma luta solitária pela sobrevivência.

Em Torto Arado,  primeiro romance de Itamar Vieira Junior e verdadeira obra-prima da literatura brasileira, a comunidade que se forma na Fazenda Água Negra, no sertão da Bahia, é que dá algum alento para os personagens. Ao retratar a vida de duas irmãs envolvidas em um acidente que marcaria suas vidas para sempre, Vieira Junior também mostra o valor dos laços familiares, da relação com a terra, em uma comunidade que só tem a si mesma como escudo. Quando ela perde sua liderança, perde também sua coesão e sua capacidade de permanecer unida – e resistir.

Na vida urbana, esse tipo de vínculo parece praticamente ter deixado de existir. A pandemia causada pelo novo coronavírus, por um momento, pareceu reacender essa fagulha, ao provocar a solidariedade entre vizinhos, amigos e familiares, procurando proteger os mais vulneráveis. Mas logo essa chama se apagou, e o debate voltou a se centrar no conforto individual em detrimento do coletivo, o que vale até para questões tão banais quando o uso de máscara de proteção em espaços públicos. 

Em um artigo recente na revista americana The New Yorker, o jornalista Adam Gopnik analisa justamente a perda de capital social na maior democracia do mundo. Esse capital é definido como aquele que deriva das relações de confiança que estabelecemos uns com os outros, do qual nos beneficiamos como sociedade. No entanto, a resposta dos Estados Unidos – e muitas das observações valem para o Brasil também – à epidemia mostram que a crescente desconfiança estimulada por governantes mina dia a dia esse ativo. E, sem a capacidade de ser empáticos e atuar em prol de nossas comunidades, perdemos todos, não importa de qual lado do espectro político estejamos.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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