Diziam que era um embusteiro. Diziam que era um santo. Alguém dizia: paira alguma coisa sobre ele, como uma espécie de infelicidade.

Uma viagem da França até o Japão em busca de ovos do bicho-da-seda é um tema tão amplo que poderíamos imaginar essa saga recontada por vários autores. Uma aventura de Júlio Verne, um drama histórico de Tolstoi, um relato no melhor estilo Robinson Crusoe de Defoe.  Nada disso, porém, chega perto de resumir Seda, do italiano Alessandro Baricco.

Neste livro, a travessia para o outro lado do mundo é a origem a um romance tão delicado quanto o tecido que dá nome à obra. Sutileza é, aliás, o principal traço de Baricco. Seda narra quase toda a vida de um homem, com suas diversas viagens ao Japão, mas não há detalhes supérfluos, diálogos excessivos, descrições detalhadas. A história segue um ritmo suave, se apoia em repetições para marcar a passagem do tempo e parece exigir calma do leitor. Como na vida, a impressão que temos é que qualquer virada de página mais brusca poderia alterar de forma irrevogável essa história.

O personagem principal, Hervé Joncour, era um homem comum. Morava em uma pequena vila no sul da França. Esperava atender aos desígnios do pai e seguir carreira militar. Casado com Hélène, uma jovem de voz bonita, ainda não tinha filhos. Não era um homem ambicioso.

Era, além disso, um daqueles homens que amam observar a própria vida, julgando imprópria qualquer ambição de vivê-la.

Deve-se registrar que esses homens observam seu próprio destino da maneira como os outros, mais numerosos, costumam observar um dia de chuva.

Baricco é daqueles escritores que escrevem uma prosa quase lírica, poética. Sua escrita é a da economia. São poucos adjetivos, frases concisas, capítulos curtos. Nada disso faz falta, porém.  Quando cada palavra está em seu lugar, não é preciso escrever muito.

O personagem principal, como já vimos, não era dono de seu destino. Assim como foi guiado pelo pai para seguir no Exército, também sem muita reflexão e vontade acaba se envolvendo com o lucrativo negócio do bicho-da-seda, trazido para a região de Lavilledieu por um amigo, Baldabiou, no tempo em que ainda não havia combate para as pragas que infestavam as plantações, as viagens eram longas e a seda artificial não havia sido inventada. Assim, era necessário ir longe para encontrar esses bichinhos.

Em busca de ovos sadios, Jancour viajava à África uma vez por ano. Sua vida seguia o ritmo de desenvolvimento do bicho-da-seda. Em janeiro, partia de casa, retornando sempre no primeiro domingo de abril, se possível antes da missa solene. E também antes que os ovos virassem larvas.  

Para ser mais preciso: Hervé Joncour comprava e vendia bichos-da-seda quando a essência dos bichos-da-seda consistia em serem eles minúsculos ovos, de cor amarela ou cinza, imóveis e aparentemente mortos. A palma de uma mão podia conter milhares deles.

A praga que antes tomava as plantações francesas e o levou ao Egito aos poucos se espraia pela África e pelo restante do mundo. Ou quase. No Japão, os ovos ainda seguem imaculados. E lá se vai ele para o outro lado do mundo.

A descrição que o autor faz da viagem, que durava meses, se resume a algumas poucas linhas e se repete para todas as vezes em que ele esteve no país, oscilando apenas no humor com o que os habitantes do lugar veem o lago Baikal, um reflexo do estado de espírito do próprio Jancour.  

Hervé Joncour partiu com oitenta mil francos em ouro e os nomes de três homens, que Baldabiou lhe confiara: um chinês, um holandês e um japonês. Cruzou a fronteira vizinha a Metz, atravessou o Wurttemberg e a Baviera, entrou na Áustria, alcançou de trem Viena e Budapeste, e depois prosseguiu até Kiev. Percorreu a cavalo dois mil quilômetros de estepe russa, passou pelos Urais, entrou na Sibéria, viajou por quarenta dias até alcançar o lago Baikal, que as pessoas do lugar chamavam: mar. Desceu o rio Amur, costeando a fronteira chinesa até o oceano e, quando chegou ao oceano, deteve-se no porto de Sabirk por onze dias, até que um navio de contrabandistas holandeses o levou ao cabo Teraya, na costa oeste do Japão.

Naquela terra desconhecida, o personagem encontra os bichos-da-seda que precisa e também uma menina que tem olhos sem a fenda oriental, que o olham fixamente, deitada no colo do chefe do vilarejo de produtores.  

A menina continuava a fitá-lo, com uma violência que arrancava de cada palavra dele a obrigação de soar inesquecível.

Os episódios desse romance são quase etéreos, os encontros não muito mais intenso que alguns olhares, mas a marca fica para sempre em Jancour, a ponto de ele decidir correr o risco de visitar o país quando a guerra já havia tomado conta do Japão. A menina não chega nem mesmo a ganhar um nome. A viagem, menos bem sucedida que as anteriores, foi dos únicos episódios em que Jancour de fato escolheu seu destino, em vez de apenas olhá-lo como se admira a chuva.

De repente viu aquilo que julgava invisivel.

O fim do mundo.

Ainda havia mais do que o fim do mundo. Havia a volta para casa. Quando Jancour retorna, com bichos já transformados em larva, precisa recomeçar novamente. Para ele, esse não era exatamente um problema. Sabia viver de acordo com o que a vida era capaz de lhe oferecer. Mesmo que não fosse intensamente.

As pinceladas de Baricco sobre o tempo, o amor e o destino são preciosas, mas o que mais me agrada no livro e na prosa do autor é mesmo a linguagem quase parcimoniosa com que ele descreve grandes eventos, perdas e aventuras. Se fosse possível, gostaria de escrever assim.

E vocês? Gostariam de ter o mesmo estilo de algum outro escritor?

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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