Meia-Noite e Vinte, o romance mais recente de Daniel Galera, resume a sensação que temos quase todos os dias ao abrir o jornal: em algum momento na última década, o mundo deu errado (você encontra resenha do livro aqui). O pessimismo dos personagens, especialmente de Aurora, parece crescer na esteira de um período de razoável satisfação que começou a ruir com o ataque às torre gêmeas em 2001.

O fim da história, como Francis Fukuyama uma vez batizou o período pós-guerra fria, não durou muito. O desalento crescente com as catástrofes que parecem cada vez mais iminentes, da excessiva polarização política até ameaças de terrorismo e mudanças climáticas, transparecem no livro de forma clara, sob a forma de violência ou desespero que dominam as ações dos personagens. Em um entrevista recente para o blog Livros Abertos, Daniel Galera falou um pouco sobre a questão:

De um lado, há quebras sucessivas e crescentes daquelas expectativas gestadas no fim do milênio. De outro, a sensação de um excesso de conhecimento, sobretudo científico, a respeito das tendências destrutivas da civilização, mas sem uma capacidade de ação correspondente.

Mas o que mais me chamou atenção no livro de Galera foi seu retrato do momento específico que o Brasil vive nos últimos três anos, com agravamento das tensões políticas, a eclosão das manifestações de rua, o aumento da violência urbana, a crise da água em São Paulo. A política virou tabu na mesa de jantar de Aurora, Antero participou das Jornadas de Junho de 2013, quando ajudou a quebrar a vitrine da loja da família, e Duque foi morto em um assalto a mão armada em Porto Alegre.

Os personagens, se não participantes ativos da cena política, são claramente afetados pelo esgarçamento do tecido social que marcou a história recente do país. Esse retrato pessimista do país me fez pensar sobre engajamento na literatura. É claro que faz parte do processo de escrita descrever o entorno social dos personagens, mas será que o retrato de um período muito específico poderia fazer com que essa obra envelheça rapidamente?

Fui procurar exemplos na estante, e a resposta, não muito diferente do que sugeriria a intuição, é que retratos precisos de momentos conturbados são, na verdade, um dos motes criativos mais férteis na literatura.

Um exemplo é o angolano Pepetela, pseudônimo de Artur Pestana, que lutou no Movimento Popular de Libertação de Angola e chegou a participar do governo depois da independência, mas se distanciou do poder ao se decepcionar com os rumos do regime. Esse sentimento transparece com clareza em Predadores, no qual Pepetela faz uma denúncia sobre a elite de Luanda e seus anos de conchavo com o poder ao contar a história de Vladimiro Caposso, um homem que ascende socialmente com ajuda do partido e do Estado. Os personagens específicos são bem menos importantes do que o momento histórico que o livro retrata, e sua relevância não muda com a passagem do tempo.

Para se engajar, a literatura não precisa ser um manifesto, como Revolução dos Bichos, de George Orwell. Há formas mais sutis, e por vezes até mais eficazes, porque nos fazem enxergar realidades não tão óbvias por outros ângulos.

A obra-prima, nesse sentido, são os relatos de Primo Levi de seu período em um campo de concentração nazista. Em É Isto Um Homem (resenha aqui), Levi faz um relato minucioso e desapaixonado, embora profundamente perturbador, dos seus meses em Auschwitz. Suas descrições do funcionamento do campo de concentração não precisam de adjetivos, de fábulas ou de figuras de linguagem para que a lembrança daquele período da história não seja jamais esquecida.

É claro que nem toda a literatura é um manifesto político. Em sua palestra em São Paulo, no Fronteiras do Pensamento, Ian McEwan foi questionado sobre a polêmica em torno de um dos seus primeiros livros, O Jardim de Cimento, que retrata o relacionamento amoroso entre dois irmãos. McEwan foi direto:

Não é papel dos escritores dizer às pessoas como elas devem viver, mas sim descrever como elas vivem.

McEwan, porém, não deixa de fazer literatura engajada ao abusar da ironia para compor vários de seus personagens, como o cientista prêmio Nobel de Solar. Ele deveria estar preocupado com o aquecimento global, mas na verdade seus esforços visam atender apenas demandas individuais. Ao mostrar como vivemos, muitas vezes a literatura nos coloca justamente no papel do outro, uma habilidade humana que parece cada vez mais em desuso.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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