[Resenha] São Paulo nas Alturas

Se o Brasil não tem um prêmio Nobel para chamar de seu, na arquitetura o país acumula dois prêmios Pritzker, a mais prestigiosa premiação do ramo, que já celebrou, além dos brasileiros Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, grandes nomes como I. M. Pei, responsável pela pirâmide invertida do Louvre, e Zaha Hadid, que entre outros projetos assinou o museu Maxxi em Roma.

São Paulo nas Alturas, do jornalista Raul Juste Lores, nos leva a um passeio de reconhecimento pelos projetos desses dois arquitetos e de muitos outros menos célebres, que moldaram a forma como a cidade se relaciona com a arquitetura.

Niemeyer fez parte da geração modernista que, entre as décadas de 1950 e 1960, alterou o panorama visual – o “skyline”, na falta de uma palavra melhor – da cidade, com a construção de edifícios como o Copan, o Conjunto Nacional, o edifício Itália,  entre tantos outros que hoje são ponto de referência na cidade. De forma bastante didática, Lores nos oferece, neste livro, um passeio pelas origens de uma cidade que, no intervalo de duas décadas, deixou para trás as casas e sobrados e os edifícios artdéco para se jogar de cabeça no modernismo, em um raro momento no qual interesses comerciais e artísticos encontraram sintonia.

A leitura é surpreendente. Cheguei ao livro por um indicação de um grupo de amigos, que selecionou este título como leitura para discussão em uma roda de conversa no mês de setembro. À primeira vista, desanimei. Outros títulos, de ficção, interesse primário do Achados & Lidos, haviam sido mencionados e tinham despertado mais minha atenção. Comecei a leitura um pouco a contragosto para, em menos de 30 páginas, não parar de comentar com quem estivesse do lado as descobertas sobre a história da cidade que estava fazendo com o livro.

A arquitetura, afinal, é uma das grandes expressões artísticas de nosso tempo, e São Paulo nas Alturas nos leva a um passeio pela modernização da cidade. Aqui, a estética de vanguarda que despontou na Europa com expoentes como Le Corbusier, Mies van der Rohe e a Bauhaus, acabou encontrando respiro, enquanto Europa e Estados Unidos lidavam com as cicatrizes do período pós-guerra. Foi uma época em que a forma e a função traçaram caminhos paralelos, abrindo passagem para pedestres e acomodando uma população que, a cada ano, se tornava mais urbana e tentava encontrar um espaço, mesmo que diminuto, provido de serviços públicos, praticamente inexistentes fora das áreas centrais  da cidade.

Dessa forma, mais do que um tratado sobre arquitetura e nomes que fizeram história  nesse período, Raul Juste Lores fornece um panorama da ocupação da cidade, das pensões e cortiços sem janelas e banheiros aos edifícios mais modernos que ainda marcam a paisagem da cidade, contribuindo para o nosso entendimento dos caminhos escolhidos pelos cidadãos  e o poder público do município. Nem sempre, logo nos mostra Lores, foram feitas as escolhas mais inteligentes.

A velocidade com que a verticalização aconteceu em São Paulo é assombrosa. Se em outros lugares esse processo de ocupação urbana muitas vezes demorou décadas, o que permitiu cidades mais planejadas, em São Paulo tudo aconteceu de forma acelerada. Para se ter ideia, em 1945 menos de 1% da população da cidade vivia em apartamentos. Hoje, cerca de um terço da população vive em prédios na cidade, um número que é mais alto no centro, onde esse adensamento urbano é mais notável.

Esse é, contudo, apenas o pano de fundo do livro. Por meio de vasta pesquisa, Lores resgata a história de cada edifício emblemático da cidade. Muitos deles foram patrocinados por nomes de peso da indústria nacional, como os Matarazzo, em uma época em que a elite, no vazio deixado pelo poder público, ainda buscava empreendimentos que uniam o público ao privado. É dessa época o Masp, uma ideia fixa de Assis Chateaubriand, e o Ibirapuera, que obteve o patrocínio  de grandes industriais  da época. Nas últimas décadas, contudo, a cidade parece ter desaprendido, com as novas tendências que passaram a dominar o mercado  imobiliário a partir da década de 70, a tornar o espaço privado um bem público.

Um dos símbolos mais marcantes da cidade, o Copan, erguido na década de 50, por exemplo, tinha unidades de 32m² a 180 m², e Niemeyer, filiado ao Partido Comunista, se empolgava com a ideia de ricos e pobres morando no mesmo lugar. Essa visão seria enterrada pela expansão imobiliária nas décadas seguintes, em que se optou pela segregação como força motriz do desenvolvimento urbano.

O Copan  nasceu ainda do desejo de se tornar um epicentro da vida na cidade, a partir do slogan “um pé onde você trabalha, outro onde você mora”. Naquela época, se pensou que uma outra cidade de São Paulo, mais pedestre, era possível.  É interessante que, meio século mais tarde, a mesma premissa tenha baseado um condomínio de estilo arquitetônico duvidoso, que seria a antítese da mistura entre público  e privado do Copan. O Condomínio Cidade Jardim, construído à beira da Marginal Pinheiros, inacessível para pedestres,  permite a uma elite endinheirada habitar, trabalhar e passar o tempo livre no mesmo local, afastado de todo o convívio com o restante da cidade.

Como escreve Lores:

Aqui, espalharam-se [nos últimos trinta anos] prédios ditos “inteligentes”, mas afastados das calçadas, amuralhados ou com estacionamentos na frente, disposição que deixa a vitrine ou a porta de entrada com o mesmo charme de uma revendedora de carros usados.

Perdemos, assim, o que a urbanista americana Jane Jacobs chamava de  “olhos nas ruas”, um dos mecanismos de segurança pública da cidade, que é a construção de espaços híbridos, com residências e comércio, contribuindo para a circulação contínua de pessoas e, assim, afastando  a violência. Um dos últimos edifícios a surgirem na cidade com esse propósito foi o Conjunto Nacional, que até hoje mostra a importância das edificações  privadas na construção  de espaços públicos.

Nas décadas seguintes, o casamento entre vanguarda arquitetônica e mercado imobiliário se desfaria, com o crescente interesse da classe média por condomínios que afastassem os edifícios da vida da cidade. Ao contrário de Niemeyer, que participou de inúmeras obras públicas, Paulo Mendes da Rocha, o segundo brasileiro a receber o Prêmio Pritzker, fez poucos edifícios para o mercado.

Apenas mais recentemente a cidade parece ter acordado desse sonho de reclusão para perceber, aos trancos, que é preciso ocupar a cidade, com trânsito de pedestres, o que é possível sobretudo no centro.  Bares e restaurantes ressurgiram na região, como o rooftop Esther, no edifício Esther, e casas sempre cheias no térreo do Copan, por exemplo. No entanto, a região,  com tamanha história arquitetônica, ainda nos assombra pelo imenso descaso com que as autoridades tratam nosso patrimônio histórico e, principalmente, a população que vive no local.

Ainda assim, ao fim do livro, dá vontade de sair andando pela cidade. A edição bem acabada de São Paulo nas Alturas se  preparou para tanto: nele, encontramos um guia encartado, com mapas, indicação de estações  de metrô e passeios para ver os prédios citados no livro. Vamos conhecer São Paulo?

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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2 Comentários

  1. Ótima resenha. Será meu presente de aniversário para a Celia. As editoras precisam saber disso! 😉

    • Tainara Machado

      1 de outubro de 2017 at 16:31

      Obrigada, Helder!! Acho que ela vai gostar muito dessa leitura! Depois conte para a gente se o presente fez sucesso! 🙂

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