Misturar política com literatura dá certo? Em As Manifestações, a escritora francesa Nathalie Azoulai faz uma aposta corajosa e coloca a temática no centro do seu romance. Mais do que um pano de fundo, a política é a engrenagem que move a narrativa.

Virginie Tessier, Anne Toledano e Emmanuel Teper são três amigos que se conheceram no colégio e tiveram uma juventude intensa, participando das manifestações dos anos 80 em Paris. De origens bastante distintas, esse trio encontra suas semelhanças no movimento político de esquerda que contagiou a França nesse período.

Anne nasceu no seio de uma família judia burguesa, muito culta e simpatizante da direita. Emmanuel, filho de intelectuais, cresceu rodeado pelos debates acadêmicos de esquerda. Virginie, filha da classe média francesa, não foi educada em um ambiente politizado, tampouco culto, mas a realidade proletária de seus pais os aproximava da esquerda.

Ainda no colégio, os amigos organizaram sua primeira manifestação em prol de um garoto de origem árabe, de ótimo desempenho escolar, que corria o risco de não conseguir seu diploma, porque sua família estava à beira de ser deportada. Era um período na França em que a esquerda, enquanto movimento de defesa dos direitos das minorias, era o caminho a ser tomado.

No entanto, o romance de Azoulai não está centrado apenas nessa época. A autora traz, em uma narrativa que oscila entre os anos 80 e os anos 2000, dois retratos desse grupo de amigos. Os relatos se alternam em capítulos que ora trazem a perspectiva de Anne, ora a de Virginie. Essa construção é interessante, porque os destinos das duas amigas se opõem, ao mesmo tempo em que se complementam a partir de uma relação estabelecida no limite tênue da competição e da admiração.

Como era de se esperar, a vida adulta acaba por distanciar os amigos. Emmanuel foi trabalhar como correspondente na América. Anne estudou Filosofia, casou-se com um católico francês, teve um filho e divorciou-se. Virginie graduou-se em Letras, tornou-se professora de colégio, formou uma família tradicional francesa e deixou Paris para viver em uma bela casa cuidadosamente decorada no interior.

Embora ainda se vissem com uma frequência imposta e programada, a convivência já não era tão harmônica. As incompatibilidades da rotina adulta se mostraram bem mais difíceis de contornar do que as origens familiares distintas o foram na adolescência.

Não apenas os amigos mudaram, mas a sociedade também. Azoulai traz para o centro do seu romance uma questão tão ou mais polêmica que a política: o antissemitismo que voltou a aflorar na Europa, especialmente na França, nos anos 2000.

A complexidade desse tema se expressa na personagem de Anne. Ela se vê encurralada entre suas origens e suas crenças políticas. A esquerda adota, cada vez mais, um discurso agressivo em relação ao Estado de Israel, tomando partido da minoria árabe no conflito no Oriente Médio. Além disso, a forte migração muçulmana para França cria um novo campo de batalha nesse território. O clímax para a personagem chega quando ela não se sente confortável em participar das manifestações contrárias à ascensão de Le Pen e seu partido de extrema-direita, o Front National, ao poder (em 2002, Jean-Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, chegou ao segundo turno das eleições presidenciais com grandes chances de vencer, suscitando manifestações por todo país).

A confusão se instala na cabeça de Anne, quando ela percebe que está se tornando aquilo que mais rejeitava: um espelho dos seus pais e familiares. Assim, revela-se a principal temática do romance: quão complexa é a formação política de um indivíduo. Ela é um misto de experiências, relacionamentos, educação, origens, maturidade e contexto.

Há quem julgue essa obra de Azoulai superficial e cheia de clichês. Não poderia ser diferente com um público tão politizado como os franceses o são. Superficialmente ou não, a autora consegue retratar uma característica social bastante forte do povo francês: a inclinação ao debate político e às manifestações como forma de luta pelos seus direitos. Inclusive, descobri que os franceses têm, na linguagem coloquial, um apelido para o substantivo “manifestations”: a corruptela “manifs”. As “manifs” fazem parte de sua cultura e do meu modo de vida. Tanto que, quando Anne se desencanta com a vida militante, um vazio e uma perspectiva sombria se instalam em sua existência:

Eu não tenho essa boa natureza humana, eu estou convencida de que o pior é uma certeza, que amanhã será sempre pior que hoje. Eu não era assim antes, alguma coisa em mim se quebrou. Não é possível militar pensando que o pior vai acontecer.

E, apesar de o romance retratar um contexto específico da França, o cotidiano de debates políticos que Azoulai retrata não é assim tão distante da nossa realidade. O Brasil vive um momento de polarização política, em que os embates são frequentes. Como não se identificar, por exemplo, com este trecho, em que Virginie descreve uma discussão de Anne com seu primo, durante um jantar comemorativo em família:

Quantas vezes será preciso repetir a vocês que, nas noites de festa, não devemos falar de política?, lamenta sua mãe. Então, eu me escuto dizer, com uma voz que parece saída de debaixo da mesa, que não se trata de política, que é muito mais grave que isso.

Colocar posicionamentos políticos em pauta nunca é o caminho mais tranquilo, nem mais seguro, no sentido de aceitação. Mas como diria o fotógrafo americano Robert Frank, “o modo como se vive já é em si uma atitude política”. A literatura, certamente, não foge a essa regra.

Ps.: não encontramos uma edição em português deste livro, mas deixamos aqui nossa dica para as editoras brasileiras investirem na tradução de Nathalie Azoulai, que ganhou, em 2015, o Prix Médicis, uma premiação literária francesa concedida a escritores em início de carreira ou que ainda não alcançaram notoriedade correspondente ao seu talento. ☺

Mariane Domingos

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Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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