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[Divã] Histórias da Flip, parte 1

Quem passou pela rua Comendador José Luiz, no Centro Histórico de Paraty, na tarde de sábado, avistou um amontoado de gente sentado no chão ou parado de pé. A roda se formava em torno de um banco simples de madeira, sobre o qual se encolhia uma figura tímida, de aspecto gracioso e voz serena. Os transeuntes que chegavam até ali, quando não decidiam se juntar ao grupo, davam meia volta para não atrapalhar ou atravessavam a roda apressados, fazendo caretas de desculpas silenciosas pelo incômodo e esticando olhares curiosos sobre aquele palco improvisado. Quem seria aquela mulher?

Aquela mulher era a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, uma sobrevivente da luta fratricida entre os tutsis, sua etnia, e os hutus. A autora se salvou do desfecho trágico dessa guerra, porque conseguiu o exílio, primeiro para o Burundi, depois para a França. Seus pais, irmãos e sobrinhos, no entanto, não tiveram o mesmo destino. Em 1994, Mukasonga perdeu 27 membros de sua família. Nessa época, ela já morava na França, onde as manchetes de jornal anunciavam o que a ONU em pouco tempo confirmaria: um genocídio havia devastado Ruanda. Foram cerca de 800 mil mortos em 100 dias.

Muitos que passaram pela rua de Paraty naquele sábado provavelmente não faziam ideia de quem era Mukasonga. Aliás, antes da Flip, a maioria dos brasileiros não a conhecia. A partir de agora, a expectativa é que a escritora ganhe cada vez mais leitores por aqui: dois dos seus livros acabam de ser lançados em português – A Mulher de Pés Descalços e Nossa Senhora do Nilo.

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[Resenha] A Mulher de Pés Descalços

À Scholastique Mukasonga não foi dada a chance de cumprir o desejo da mãe, que era ter o corpo coberto depois de sua morte. Os assassinos não deixaram sequer um corpo, apenas os membros soltos e espalhados de Stefania, A Mulher de Pés Descalços (a edição brasileira saiu recentemente pela Editora Nós).

Nascida em Ruanda, Mukasonga viveu a luta fratricida entre os tutsis, sua etnia, e os hutus. Diferente do restante de sua família, a escritora conseguiu o exílio, primeiro para o Burundi, depois para França. Stefania, sua mãe, foi uma entre tantas vítimas do genocídio que devastou o país em 1994.

Este livro é a homenagem de Mukasonga à mãe. Mas não é só isso. É também um tributo às mulheres e à cultura ruandesas. É ainda uma forma de resistência à tirania que cala os mortos, reduzindo vítimas a números, e aniquila os vivos, transformando suas memórias em traumas, em tabus. Mukasonga venceu o horror das lembranças e criou, com sua literatura, um relato único de sua etnia.

Cada capítulo do livro dá conta de um aspecto da vida das famílias tutsis. A busca incansável da mãe por criar esconderijos para salvar as crianças, a colheita do sorgo, a construção das casas, as lendas, os casamentos, a farmácia, os rituais de beleza, a alimentação – tudo isso tem espaço na narrativa de Mukasonga.

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“Por que me atrai a voz que fraqueja, por que me encantam as pálpebras cheias, os olhos marejados, se toda a minha vida batalhei contra esse transbordamento inevitável, contra o excesso dos afetos, contra a fragilidade. Mas um adulto que chora não é frágil, isso aprendi com convicção, essa lição já não me escapa: o adulto que chora sem se envergonhar é de uma transparência invejável.”

 

Julián Fuks em A Resistência

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