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[Resenha] De Amor e Trevas

De Amor e Trevas, romance autobiográfico do escritor israelense Amós Oz, é um passeio memorável pela Jerusalém dos anos 40 e 50, com um olhar profundo sobre o lar de sua infância, que, assim como a conturbada cidade, guardava belezas e tensões dignas de nota. Em uma narrativa que abre mão da ordem cronológica para acompanhar os caprichos da memória, Oz revisita o passado e resgata a construção de sua própria identidade e a do seu país.

Filho de imigrantes do Leste Europeu, que fugiam do antissemitismo crescente no Velho Continente, Oz nasceu em Jerusalém, em uma família de intelectuais. Seu pai, Árie Klausner, era sobrinho do grande estudioso da história e literatura hebraica Yossef Klausner. Apesar de toda sua erudição, o pai de Oz não conseguiu seguir os passos do tio e jamais ocupou um lugar de destaque na elite intelectual de Israel. Avesso ao silêncio e sempre em busca do gracejo perfeito, Árie era uma pessoa brilhante que nunca soube mostrar seu brilho.

Como ele conquistou Fânia Klausner, mãe de Oz, era um verdadeiro mistério. Dona de uma beleza contagiante e de uma retórica incomum, ela tinha a habilidade de se colocar, com extrema naturalidade, no centro das conversas mais eruditas. A luz que Fânia irradiava no convívio social disfarçava a escuridão que ela carregava em seu íntimo. O abandono da terra natal para viver em um lugar desconhecido e ermo, um casamento infeliz, uma alma sensível demais para crueza do mundo – essas são apenas algumas das especulações que pululam na narrativa de Oz, em uma tentativa de compreender, ou ao menos apaziguar, o fim trágico da mãe. Fânia se suicidou quando o filho tinha 12 anos.

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[Lista] 5 livros de não ficção

A literatura tem um papel importante na representação da realidade. Se a ficção já cumpre bem esse papel ao trazer tramas e personagens que refletem os dilemas do indivíduo e da sociedade, a não ficção consegue conectar o leitor com seu entorno de maneira ainda mais direta. Como nessa categoria cabem inúmeros gêneros literários e temáticas, a lista de hoje é bastante diversa – de memórias a livro-reportagens, de tragédias a arte.

17.09.11_lista_nao_ficcao_11. A Sangue Frio, de Truman Capote: nesse clássico contemporâneo, o escritor americano inaugurou um novo estilo literário – o romance de não ficção. Obra polêmica justamente por se estruturar sobre a linha tênue da realidade e da ficção, não há dúvida que Capote chacoalhou tanto os conceitos de literatura quanto de jornalismo.

Ele passou seis anos apurando o brutal assassinato da família Clutter, ocorrido em 1959 em uma pequena cidade no Kansas, Estados Unidos. Sem gravador ou bloco de notas, contando apenas com sua memória, Capote conversou com vizinhos da vítima, investigou as circunstâncias do crime e, principalmente, entrevistou os dois assassinos. Em anos de apuração, o autor acabou estabelecendo uma estranha relação de amizade e confiança com os criminosos – fato que, por diversas vezes, colocou em xeque a veracidade de sua narrativa.

A obra-prima de Capote não alcançou o sucesso apenas por essa polêmica. A linguagem irônica, os densos perfis psicológicos dos envolvidos e o exame exaustivo, ora neutro ora apaixonado, da realidade deram origem a um retrato cortante da violência nos Estados Unidos e do lado sombrio do sonho americano:

De que tinham medo? “Pode acontecer de novo.” Com algumas variações, era essa a resposta costumeira. No entanto, uma professora observou: “As pessoas não estariam tão alteradas se isso tivesse acontecido com outros que não os Clutter. Com uma família menos admirada. Menos próspera, menos segura. Mas eles representavam tudo o que as pessoas daqui valorizam e respeitam, e o fato de uma coisa dessas ter acontecido com eles – é o mesmo que alguém dizer que Deus não existe. Dá a impressão de que a vida não tem sentido. Acho que as pessoas não estão apenas assustadas; estão é profundamente deprimidas”.

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[Resenha] Você Já Teve uma Família?

Para seu romance de estreia, o escritor Bill Clegg escolheu temas bastante comuns na literatura, embora traiçoeiros. Perda, luto e perdão formam uma combinação que tem tudo para render um bom livro, desde que se caminhe a passos firmes na corda bamba que despenca no piegas e na autoajuda. Comecei a leitura de Você Já Teve uma Família? um pouco desconfiada, mas, depois de virar a última página (especialmente esta!), posso dizer que Clegg passou com louvor por esse desafio.

O livro começa com uma perda. June Reid vê seu mundo ruir quando toda a sua família – a filha Lolly, o genro Will, o namorado Luke e o ex-marido Adam – morre em uma explosão causada por um vazamento de gás de cozinha, um dia antes do casamento de sua filha. Ela é a única sobrevivente, porque não estava em casa na hora do incêndio. Neste trecho, Clegg descreve o cenário da tragédia que abateu June:

Lembra que saiu andando da igreja na direção de sua amiga Liz, que estava à espera em seu carro. Lembra como a conversa parou e as pessoas se misturavam e recuavam meio passo para lhe abrir caminho. Ouviu chamarem seu nome – de modo tímido, hesitante –, mas não parou nem se virou para responder. Era uma intocável, sentiu isso profundamente quando chegou ao outro lado do estacionamento. Não por escárnio ou por medo, mas por causa da obscenidade da perda. Era inconsolável, e o caráter total e assombroso daquilo – todos se foram – silenciava até mesmo aqueles mais habituados com as calamidades.

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[Resenha] Formas de Voltar para Casa

Sabia pouco, mas pelo menos sabia isto: que ninguém fala pelos outros. Que, mesmo que queiramos contar histórias alheias, terminamos sempre contando nossa própria história.

Para ser bom, um livro não precisa ser grande, ter trama complexa, muitos personagens ou abusar das palavras difíceis. Ele pode ser tão simples quanto Formas de Voltar para Casa, do chileno Alejandro Zambra.

Como diz Alan Pauls na resenha que ocupa a orelha da edição da Cosac Naify (essa da foto), o tom é a grande invenção do Zambra romancista. E ele é baixo. São frases curtas, diretas, mas cheias de sentido e interpretações, como quando, logo na primeira página, o narrador relembra as brigas dos pais. “Ela dizia cinco frases e ele respondia com uma única palavra. Às vezes dizia, cortante: não. Às vezes dizia, à beira de um grito: mentira. E às vezes, inclusive, como os policiais: negativo”. Zambra, que já apareceu por aqui, é fonte quase inesgotável para o Marque a página.

Se o tom é baixo, os sentimentos são sutis, quase sussurrados. O livro começa com as lembranças do terremoto que atingiu o Chile em 1985, noite na qual o narrador, sem nome, conheceu Claudia, “o nome de noventa por cento das mulheres da minha geração”. Ela é um dos tantos “personagens secundários”, título do primeiro capítulo do livro, que teve a vida virada do avesso por um acontecimento que parecia estar fora do presente, de tão longe do dia a dia daquele bairro no subúrbio de Santiago: o golpe que levou Augusto Pinochet ao poder.

Com curiosidade, parecendo se tratar de apenas mais uma brincadeira de criança, o narrador obedece ao pedido dela, três anos mais velha, para que espie seu tio, Raúl. Só vai entender que assim partilhou de algumas das muitas cicatrizes que Claudia leva desse período muitos anos depois. O que ele,  por sua vez, guarda do período mais sombrio da história recente do Chile é, pelo contrário, a falta de marcas indeléveis desses anos. Em outro momento, pensa, em meio a uma conversa com colegas de faculdade, que “era o único que provinha de uma família sem mortos, e essa constatação me encheu de uma estranha amargura: meus amigos tinham crescido lendo os livros que seus pais ou seus irmãos mortos tinham deixado em casa. Mas na minha família não havia mortos nem havia livros”.

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