A troca de cartas é uma intimidade que se perdeu com o tempo. Em A Caixa-preta, o israelense Amós Oz resgata esse hábito para dar forma à história de uma separação que deixou cicatrizes e vítimas.

O livro começa com o pedido de socorro de Ilana à Alex Guideon, um professor famoso e rico, do qual se separou há sete anos e com o qual trocou apenas silêncio nesse período. Ilana pede que ele a ajude a encontrar Boaz, o filho do casal que está sumido, sem manter contato nem com ela, nem com seu atual marido, Michel Sommo.

É a correspondência entre esses quatro personagens e também Zakheim, o advogado de Alex, que dará forma à narrativa. A Caixa-preta é um livro impressionante não só porque Oz é capaz de imprimir um ritmo intenso à narrativa, com pequenas revelações a cada carta, mas também porque cada voz tem seu próprio estilo de escrita e suas idiossincrasias, com a construção de personagens complexos a partir de múltilplos pontos de vista, como um prisma.  

Na primeira carta de Ilana, vemos que o tempo não foi capaz de curar completamente sua paixão, mesmo depois de uma separação dolorosa, de um novo casamento, de uma segunda filha e do manto de indiferença com o qual se cobre Alex, descrito como um homem frio, quase polar.

Sim, o divórcio livrou você de toda responsabilidade em relação a Boaz e de qualquer obrigação comigo. Meu coração lembra de tudo isso, Alec. Não tenho nenhuma esperança. Escrevo para você como se estivesse numa janela e falasse com as montanhas. Ou com a escuridão entre as estrelas. O desespero é a sua especialidade.

No começo, as respostas de Alex limitam-se a cheques cada vez mais vultosos, que fazem jorrar dinheiro sobre Ilana e Michel Sommo, uma família judia comum, de poucas posses.A riqueza súbita até permite um interlúdio de paz do casal com Boaz. Mas, como já reconheceu Ilana, o ex-marido tem o desespero como especialidade e sua intromissão na vida dos dois, solicitada pela própria Ilana, terá consequências cáusticas – e duradouras. Ilana sabe que o terreno que está adentrando é pantanoso, mas não consegue mais fechar a porta aberta para o passado.

Na verdade, deveríamos voltar ao silêncio estipulado entre nós. A partir de agora, até o fim de nossas vidas. Aceitar o seu dinheiro e calar. Mas ainda persiste alguma luz trêmula sobre o charco nas noites, e nenhum de nós consegue desviar o olhar dela.

Oz é um mestre em criar imagens ao mesmo tempo singelas e poderosas, de grande força narrativa, que ecoam na cabeça do leitor por longos segundos. Uma dos melhores trechos do livro é uma resposta de Ilana à Alex, que na carta anterior escreveu que o conceito de felicidade foi criado por católicos e que esse é na verdade um sentimento inexistente em outras religiões, que tratam apenas da alegria.

Ilana responde que a felicidade existe e, ao contrário do que dizia Tolstoi – no que eu tendo a concordar – é sempre diferente em cada família.

Com todo respeito a Tolstoi, eu digo que o contrário é o correto: os infelizes na maioria estão imersos em sofrimentos convencionais, vivem numa única rotina estéril entre quatro ou cinco clichês de miséria gastos. Enquanto a felicidade é um objeto fino e raro, uma espécie de vaso chinês, e os poucos que chegaram a ele cinzelaram-no traço por traço durante anos, cada um à sua imagem, cada um segundo as suas medidas, portanto não há uma felicidade que se pareça com as outras.

Aos poucos, a troca de cartas entre os dois ganha intensidade, sente-se um ardor que quase queima a ponta dos dedos, que o tempo não foi capaz de apagar. Os dois sabem que essa é uma batalha que não pode ser ganha, mas insistem em lutá-la. Ou, como melhor define Alex, insistem em analisar os destroços desse relacionamento, mesmo sabendo que não há retorno.

Acabou, Ilana. Xeque-mate. Como depois de um desastre de avião, sentamos e analisamos, por correspondência, o conteúdo da caixa-preta. E daqui em diante, como está escrito em nossa sentença judicial, não temos mais nada um com o outro.

O clima bucólico ganha força na segunda metade do livro, quando Boaz muda para a antiga casa do avô e começa a reconstruí-la, recolocando de pé o único lugar onde há verdadeira paz no livro todo. Embora tenha se encontrado no local, Boaz ainda é pressionado por Michel, que cada vez mais assume um tom pregador, a voltar para casa e respeitar os preceitos judaicos.

Por mais que se descreva um homem simples, de ascendência social humilde, Michel será facilmente corrompido pelo dinheiro que passa a fluir de Alex na direção da família. Logo sacrífica a família no altar em que supostamente está a nação e a terra prometida, mas que traz consigo status social, acesso aos gabinetes de ministros, a um outro bairro, a uma outra vida.

Só que esses sonhos não são compartilhados por Ilana, que assiste à tranquilidade de sua vida familiar recém-construída ruir. Ela sabe que não suportará a vida de acessório do homem poderoso sem as pequenas felicidades frugais que desfrutava ao lado de Michel. Nesse xeque-mate, o dinheiro de Alex ganhou.

Em um livro dominado por paixões, Amós Oz guarda ainda espaço para discutir religião, fanatismo e, principalmente, a consolidação do movimento sionista na segunda metade do século XX. Oz, que é pacifista, escancara as contradições da fundação de Israel por meio dos conflitos entre Michel e Boaz, principalmente. Logo no começo, em um dos primeiros desentendimentos entre os dois, Michel, cheio de lições de moral, questiona:

O que é você? Diga-me. Uma árabe? Um cavalo?

Boaz é incapaz de raciocínios complexos e tem uma escrita rudimentar, repleta de erros de sintaxe e gramática, mas mesmo assim ele logo consegue enxergar a incongruência entre o que prega Michel e sua atitude com os que decidem seguir um caminho diferente. Os árabes, por exemplos, são equiparados a animais, sem direito à Terra Prometida, da qual Michel pretende expulsá-los por meio da compra dos territórios conquistados na Guerra dos Seis Dias.

Enquanto Michel personifica, em alguns trechos, a cegueira do poder ao não conseguir enxergar o distanciamento crescente de sua esposa, Boaz representa o sonho de liberdade. E é nesse lugar um pouco idílico construído pelo menino que as paixões finalmente poderão ser domadas.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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