Como será o romance no futuro? É fácil pensar em descrever o passado, com seus acontecimentos mais lentos, mas às vezes me pego refletindo sobre como os escritores vão retratar tempos hiperconectados, de uso massivo das redes sociais, em que as pessoas substituíram uma parte expressiva da comunicação escrita por mensagens diretas e monossilábicas no celular.

Essa mudança de parâmetro, tal qual tantos outros avanços tecnológicos, começa a se refletir sobre a produção literária atual – já temos vestígios do Facebook em Barba Ensopada de Sangue, embora o narrador prefira justamente ficar fora da rede social – e por certo teremos bons romances ambientados em algum momento dos últimos anos, em que aplicativos substituíram mapas, ligações de telefones públicos deixaram de existir e o desaparecimento de algum personagem é quase impossível. De qualquer forma, é com peso no coração que nos vejo dizer adeus às cartas nos romances.

As missivas foram – e ainda o são, em larga medida – uma ferramenta importante para escritores, como mecanismo para resgate de memórias. Alice Munro usa cartas em diversos contos de Fugitiva, e várias ajudam a resgatar fragmentos do passado, a encaixar um personagem em determinado contexto social ou até mesmo a marcar um vazio, quando os bilhetes não chegam na caixa postal.  

Em A Amiga Genial, de Elena Ferrante, por exemplo, Lenu recebe e escreve cartas para Lila quando ela viaja para a praia. O estilo da amiga encanta a narradora,  a faz querer imitá-la, alimentando essa amizade que se nutria de amor e também de certa competição.

Ainda assim, esses seriam romances em que as cartas poderiam ser, em algum grau, substituídas. Mas o que dizer de A Caixa-Preta, belo romance epistolar de Amos Ós? A narrativa é toda construída com base nas cartas trocadas pelos personagens principais da história, ao longo do ano de 1976. Nós, leitores, descobrimos aos poucos as relações que ligam os autores daquelas missivas e vamos montando o quebra-cabeça de idas e vindas que formam os relacionamentos humanos. Seria impossível escrever algo assim que se passasse em 2016.

As cartas nos ajudam a entender personagens, a superar distâncias e, principalmente, o tempo. São fragmentos de memórias, uma espécie de janela para o passado. Sem elas, dificilmente Oliver Sacks conseguiria reconstituir tão bem algumas viagens que fez durante sua juventude, quando chegou à América do Norte. Metódico, ele guardava não apenas os documentos que recebeu, mas também fazia cópias de tudo que ele escrevia para seus pais, família e amigos. Esses registros contribuíram muito para sua autobiografia, Sempre em Movimento.

Já as novas formas de comunicação, como tantos avanços tecnológicos, são imateriais e permitem uma conversação instantânea, sem muita reflexão e, quase sempre, sem profundidade. Fiquei pensando nessas perdas depois de assistir à Aquarius, filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho. A polêmica em torno da manifestação que o elenco e o diretor fizeram em Cannes, ao criticarem o impeachment da presidente Dilma Rousseff, ganhou as manchetes dos jornais, mas é sobretudo o que é colocado nas entrelinhas do filme que merece destaque.

A memória é central. Não só o apartamento tinha um valor sentimental que superava qualquer proposta que pudesse ser feita pela construtora, mas o mobiliário, os objetos que estavam dentro daquela casa também carregavam uma carga emocional grande. A personagem principal, a jornalista e crítica musical vivida por Sônia Braga, dá uma entrevista a uma jovem jornalista que a questiona se, em sua vida, entre tantos discos, há espaço para a música reproduzida digitalmente.

Claro que há, responde Clara. Só será impossível encontrar, em um pen-drive, uma notícia dos Los Angeles Times sobre Paul McCartney, como ela encontra em um disco comprado em um sebo em Porto Alegre. No mundo digital, as memórias físicas podem não subsistir. Cada vez mais, vamos nos fechando no nosso mundo, sem a possibilidade de esbarrar, sem querer, com outra vida.

Perdoem o saudosismo, mas ainda é difícil imaginar boa literatura sobre grupos do Facebook! Vocês sentem o mesmo? Deixem seus comentários aqui embaixo!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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