No começo do ano passado, quando soube que um câncer descoberto nove anos antes tinha progredido para um estágio terminal, o escritor e neurocientista Oliver Sacks não procurou esconder a notícia. Sua reação foi a mais genuína possível para uma vida inteira dedicada à ciência e à escrita: Sacks publicou um artigo muito sereno para o The New York Times, do qual era um colaborador frequente, falando sobre sua doença, suas preocupações, agradecimentos e sua disposição para continuar vivendo da melhor – e mais intensa – forma possível até o fim. 

Em Sempre em Movimento, sua autobiografia lançada no ano passado pela Companhia das Letras, vemos que Sacks tinha, de fato, muito a agradecer. Com sua impressionante curiosidade intelectual e um espírito aventureiro que pouco se encaixam à visão que temos de um neurologista, Sacks viveu uma vida intensa, no qual colecionou paixões, amizades, livros, pacientes e, claro, leitores.

Ao longo do livro, também são reveladas outras facetas do médico. Nascido em Londres em uma família de médicos, era natural que ele acabasse se enveredando pela profissão dos pais. Algumas situações, porém, fizeram com que a cidade em que nasceu fosse sufocante. Sacks era gay em um período em que a homossexualidade era proibida na Inglaterra. Quando sua mãe soube, foi bastante dura e chegou a dizer que preferia que ele não tivesse nascido, embora o relacionamento entre os dois fosse, no geral, bom.

Ele também sentia-se desconfortável com os surtos do irmão Michael, que sofria de esquizofrenia, o que não deixa de ser um daqueles acasos da vida. Ao tentar escapar da doença do irmão, com a qual ele não sabia lidar, o escritor dedicaria toda a sua vida ao estudo do funcionamento do cérebro e seus problemas.

Sacks decide, então, depois de terminar a faculdade, ir para a América. O que era apenas uma temporada acaba virando um caminho sem volta. O neurologista passaria o restante da vida nos Estados Unidos, dedicando-se cada vez a uma atividade diferente, mas sempre de forma absurdamente intensa. O gosto pelas motocicletas o levam a passeios que podem somar mais de mil e seiscentos quilômetros em único fim de semana. Quando chega em São Francisco, começa a malhar e logo quebra o recorde de agachamento com peso, de 272 kg. Para saber como o cérebro reagia a certas drogas, experimentou de tudo um pouco na juventude.

Mas é sua paixão intelectual que sempre o colocou em movimento. Sacks era um leitor voraz, não só de literatura científica, mas de poesia e ficção também. Tinha uma memória impressionante e fez contatos que só podemos invejar e admirar. Foi amigo do poeta W. H. Auden, um de seus livros virou um filme estrelado por Robin Williams e Robert de Niro (Tempo de Despertar), discutiu casos e soluções com Francis Crick, um dos descobridores da dupla hélice que forma o DNA.

Mas não são apenas as grandes estrelas de sua carreira que importam. Sacks procurou abarcar o maior número possível de personagens importantes em sua vida e, de certa forma, homenageá-los. O ressentimento pelo que sua mãe lhe diz quando descobriu que era gay, por exemplo, não dura muito tempo. Os pais sempre foram uma fonte de inspiração para ele, pelo cuidado que tinham com seus pacientes. Sobre o enterro de sua mãe, Sacks escreve:

Fiquei especialmente emocionado ao ver tantos pacientes e alunos da minha mãe, e como guardavam lembranças tão vívidas, tão bem-humoradas e afetuosas – ao vê-la pelos olhos deles, como médica, professora e contadora de histórias. Enquanto falavam sobre ela, aquilo me recordou minha própria identidade como médico, professor e contador de histórias, e como isso nos aproximara ao longo dos anos, acrescentando uma nova dimensão ao nosso relacionamento.

Ao relembrar pessoas e fatos importantes, Sacks vai e volta nas histórias alguns anos, e somos guiados, cronologicamente, mais pelos seus projetos de livro do que pela narrativa. Como ele mesmo admite, seu processo de escrita era quase catártico e organizar seu fluxo de pensamentos exigia uma edição bastante cuidadosa.

Tenho a impressão de que os meus pensamentos se relevam pelo ato de escrever, no ato de escrever. Às vezes, um texto sai perfeito, mas em geral os meus escritos precisam de muitos cortes e eliminações, pois expresso a mesma ideia de várias maneiras distintas.

Por isso, precisava de parceiros e editores que conseguissem facilitar esse processo e ainda fossem capazes de dar a estabilidade emocional e o impulso que, na maioria das vezes, Sacks precisava para concluir suas obras. As relações nem sempre funcionavam bem durante muitos anos, mas algumas foram particularmente importantes, como com Colin Haycraft, dono de uma editora em Londres, durante o desenvolvimento de Tempo de Despertar.

Colin desanuviava e amenizava os meus estados de espírito, bem como os vaivéns intrincados, retorcidos, às vezes labirínticos do livro (…)

Por vezes, Colin lia os manuscritos que Sacks passava por debaixo da porta e retornava o papel já com suas anotações. Essas dificuldades e conquistas do processo de escrita e de edição de seus livros ocupam uma parte central de Sempre em Movimento. Escrever era, para Sacks, parte essencial de sua vida. Mesmo quando teve uma hérnia que não lhe permitia ficar sentado nem por um minuto sequer, escrevia de pé, usando como apoio dez volumes do dicionário de inglês Oxford sobre sua escrivaninha.

E mesmo quando enfrentava seus bloqueios criativos, Sacks nunca parou de escrever, de tomar notas, de observar tudo ao seu redor. Quando seus livros ficavam emperrados, continuava a ser um missivista em série. Apesar de sua desorganização, que rende episódios engraçados no período em que ele tentou ser pesquisador, sempre manteve seus documentos em perfeita ordem.

E não foram poucos. Segundo seus cálculos, foram mais de mil diários, escritos a partir de seus catorze anos, em caderninhos de bolso de diferentes tamanhos e formatos. Sacks guardava cópias das cartas que recebia e também das que escrevia. Esse hábito, que infelizmente caiu em desuso, contribuiu para que ele conseguisse resgatar as memórias de até 60 anos antes ou mesmo de tempos mais conturbados, como quando fez uma longa viagem pelo Canadá de moto ao deixar a Inglaterra, com pouco menos de 30 anos.

Ao longo da vida, escrevi milhões de palavras, mas o ato de escrever continua tão fresco e tão divertido como na época em que comecei, há quase setenta anos.

De fato, os textos de Sacks são divertidos, cheios de episódios inusitados que ficam impregnados na memória. Muitas vezes, para leigos como eu, a leitura sobre neurônios, estruturas neurais e córtex cerebral, entre outros termos técnicos necessários às explicações sobre o funcionamento do cérebro, pode ficar mais difícil. A escrita de Sacks, porém, nunca é enfadonha. Ele é capaz de entremear explicações científicas complexas com histórias como a do caso da mulher que se perdia na própria casa e que desenvolveu um intricado sistema de notas e avisos que permitiam que ela realizasse ao menos as tarefas básicas. Ou com experiências próprias, como quando assistiu, sob efeito de LSD, a uma batalha épica em um punho de seu jaleco de laboratório por mais de 12 horas, sem sentir o tempo passar (os dois episódios são descritos em O Olhar da Mente).

A autobiografia era um projeto já quase concluído quando Sacks soube que sua doença progredira, o que lhe deu tempo para escrever ainda mais um livro, Gratidão. Esse é o médico/cientista/professor/escritor descrito em Sempre em Movimento: alguém que emenda um projeto no outro,  de forma incansável, um excelente ouvinte e contador de histórias.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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