Da leitura à escrita

Estou lendo Reparação, de Ian McEwan. Ainda não passei da metade do livro, mas o romance já me estimulou a refletir sobre um tema que sempre me instigou – a relação entre a leitura e a escrita.

Briony Tallis, a personagem central da história, é uma pré-adolescente que ambiciona a carreira de escritora. Em várias passagens, McEwan descreve como a necessidade de expressão pelas palavras a invade com uma força incontrolável:

Presa entre o impulso de escrever um relato simples das experiências daquele dia, como num diário, e a ambição de fazer a partir delas algo maior, algo elaborado, autônomo e obscuro, passou vários minutos olhando, de testa franzida para a folha de papel e a citação infantil nela escrita, sem conseguir produzir mais nenhuma palavra. As ações, ela se julgava capaz de relatar direito, e diálogo era o seu forte. Sabia descrever a floresta no inverno e a aspereza do muro de um castelo. Mas o que fazer com os sentimentos?

Desde criança, o hábito da escrita acompanha minha paixão pela leitura. Uma das minhas maiores nostalgias são os diários. Tenho vários da minha infância e pré-adolescência, daqueles ainda com pequenos cadeados e chaves, lembram? Conservo o costume das agendas em papel, para relatar, nem que com breves frases soltas, um pouco dos acontecimentos relevantes do meu dia. A escrita é para mim como a foto é para alguns: uma forma de eternizar lembranças.

A escolha pela faculdade de Jornalismo também nasceu dessa afinidade. Minhas revistas favoritas são as de jornalismo literário, porque considero esse estilo o encontro ideal de forma e conteúdo – acredito que é possível explorar toda beleza da linguagem sem sacrificar os fatos.

Acabei trilhando outros caminhos na minha carreira que me afastaram do exercício mais pessoal da escrita. O Achados & Lidos surgiu também da vontade de me reencontrar nesse campo. E posso dizer que está sendo um verdadeiro refúgio!

Sobre a influência da leitura na escrita, existe uma frase, bastante conhecida, que vi nas paredes de um sebo da minha cidade: “quem lê fala melhor, escreve melhor e pensa melhor”. Não poderia concordar mais. Para mim, não há como gostar de escrever e não gostar de ler. Certa vez, em entrevista à revista literária The Paris Review, o autor americano Paul Auster disse:

Não consigo imaginar alguém que não tenha sido um leitor voraz na adolescência se tornando um escritor. O verdadeiro leitor compreende que os livros são um mundo em si mesmos – e que esse mundo é mais rico e mais interessante do que qualquer outro em que já tenhamos estado. Acho que é isso o que transforma um jovem ou uma jovem num escritor ou escritora – a felicidade que se descobre vivendo nos livros.

A dificuldade, no entanto, é conseguir transpor, depois de ler tantos livros bons, a condição de leitor para a de leitor-escritor. A cada ótimo romance que termino, a coragem de me arriscar no campo da ficção diminui um pouco.

Em sua obra Seis Propostas Para o Próximo Milênio, que reúne conferências de Ítalo Calvino sobre as qualidades que só a literatura pode salvar, o escritor italiano conta que Gustave Flaubert, para escrever Bouvard e Pécuchet, “o mais enciclopédico romance”, leu e consultou mais de 1500 livros!

Em tempos em que as atividades que exigem capacidade crítica e esforço intelectual são banalizadas, sempre guardo essa anedota na manga. É a prova numérica para quem acha que escrita não é uma ocupação. Escrever é sim uma atividade subjetiva, mas isso não quer dizer que ela não exija trabalho, técnica e preparação. O escritor americano Truman Capote, quando questionado pela entrevistadora da Paris Review se existem recursos por meio dos quais um escritor possa aprimorar sua técnica, disse com firmeza:

O único recurso que conheço é o trabalho. A escrita tem leis de perspectiva, luz e sombra, assim como a pintura ou a música. Se você já nasceu conhecendo-as, ótimo. Se não, precisa aprendê-las. E depois precisa rearranjar as regras a fim de adaptá-las a si próprio.

Expressar-se não é uma tarefa fácil. Cada indivíduo tem seus próprios pensamentos, crenças e perspectivas. Ser capaz de comunicar isso ao outro é uma das maiores dificuldades e, ao mesmo tempo, uma das maiores belezas do relacionamento humano. Calvino, na obra que citei acima, diz uma frase que sintetiza essa nobre virtude da escrita e, consequentemente, da literatura:

… quem nos dera fosse possível sair da perspectiva limitada do eu individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra…

É por isso que admiro o escrever tanto quanto o ler. Mergulhar em um bom livro é desvendar os mistérios que há dentro de outro eu – o escritor – e poder desfrutar da incrível capacidade de expressão desses corajosos e esforçados indivíduos. Patrick Modiano, francês Nobel de Literatura, disse certa vez:

O que amo na escrita é, sobretudo, o devaneio que a precede. A escrita em si mesma, não, pois não chega a ser tão agradável. É preciso materializar o sonho na página, e, portanto, sair do mundo dos sonhos.

Na escrita ficcional, ainda estou na fase dos devaneios. E por mais que Modiano diga que a experiência não seja a mais aprazível, ainda quero chegar lá e poder dizer que sou capaz de materializar o mundo dos sonhos em palavras escritas.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
Mariane Domingos

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2 Comentários

  1. Mari,
    Adoro ler seus textos e resenhas no blog, sempre faz com que determinado livro fique muito interessante. Todo escritor tem a necessidade de colocar pra fora essa inquietação. Você tem um estilo próprio, o dom de pincelar com palavras uma folha branca de papel.
    Vale a pena investir e se arriscar na carreira de escritora.
    Desde já te desejo muito sucesso!!!

    • Mariane Domingos

      11 de outubro de 2016 at 23:00

      Que delícia ouvir seu incentivo, Lilian! 🙂 Muito obrigada. Estou me animando cada vez mais com a ideia de me arriscar na carreira de escritora. Espero ter novidades em breve!

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