[Resenha] De Veludo Cotelê e Jeans

Literatura e humor não são uma combinação trivial. Uma boa parte dos livros que se pretendem engraçados penaria muito para ser qualificado como literatura. E a maior parte das obras de ficção não estão aí para nos fazer gargalhar, temos que admitir.

O escritor norte-americano David Sedaris supera essas distâncias com facilidade. Sua escrita nos faz rir de verdade, mas não por causa de fórmulas feitas ou apelos baratos. Sua prosa é cômica porque ele retrata com um misto de ironia e sarcasmo a vida familiar, os hábitos da classe média americana e a constante paranoia em que vivemos como sociedade.

Sedaris tem quase uma dezena de livros publicados, a maioria já traduzidos para o português, mas meu preferido é De Veludo Cotelê e Jeans. O titulo reúne crônicas autobiográficas em que quase sempre estão presentes um ou outro membro de sua extensa família: o pai, a mãe, o irmão ou uma das quatro irmãs.

As narrativas familiares são marcadas por um velado tom de crítica social. A primeira história do livro, por exemplo, trata da curiosidade do autor, ainda criança, por uma família do bairro que “não acreditava em televisão”. Ele simplesmente não conseguia imaginar como aquela família guiava suas decisões e atitudes, sem saber a que horas eles deveriam jantar, como se portar ou o que comer. É sempre assim, de forma irônica e sutil, que ele expõe os vícios americanos.

Já que não tinham TV, os membros da família Tomkey eram obrigados a conversar durante o jantar. Não faziam a menor ideia do quanto suas vidas eram pequenas, de modo que não temiam que alguma câmera pudesse considerá-los desinteressantes. Não sabiam o que era atraente, como um jantar devia ser arrumado ou mesmo a que horas as pessoas deviam comer.

Em um Halloween, a família de hábitos pouco comuns – além da falta da televisão, os Tomkey também saiam nos fins de semana para andar de barco – decide pedir doces um dia mais tarde do que o restante do bairro.

Todas as crianças da casa correm para seus quartos para proteger os doces e Sedaris empreende o grande esforço de criar um intrincado sistema de classificação para tentar entregar apenas os chocolates e balas menos valiosos. Percebendo o risco que estava correndo pela demora em seu processo, ele decide que a melhor tática é enfiar a maioria dos tabletes individuais de chocolate recheado na boca, mesmo que isso vá lhe causar uma dor de cabeça insuportável.

Quando a mãe irrompe no quarto, diz apenas que ele deveria “realmente se enxergar”.

Aquele era um velho truque, destinado a fazer a pessoa virar o ódio contra si mesma e, embora eu estivesse determinado a não me entregar a ele, era difícil me livrar da imagem mental despertada pelo comentário dela: um garoto sentado na cama, a boca toda borrada de chocolate. É um ser humano, mas também um porco cercado de lixo, se empanturrando para privar os outros.

Sedaris expõem seus defeitos, pensamentos egoístas, falhas de caráter de forma franca e sem muitas nuances. Enquanto todos tentamos guardar no fundo da gaveta nossas piores facetas, ele sabe que o melhor é rir de si mesmo.  

Classificados como não-ficção, os textos de Sedaris na verdade são bastante romanceados. Seu modo de contar histórias, de retratar memórias, de dar substância aos enredos e aos personagens, são todos atributos de um bom romancista, ainda que ele escreva sobretudo crônicas.  

O retrato da menina de nove anos, sua vizinha em uma quitinete em um bairro pobre, seu primeiro apartamento depois de sair da casa dos pais, é um exemplo. No ápice da solidão  enxotada pela mãe, a menina tenta fazer amizade com ele. Em nenhum momento ele adota um tom de piedade, mas sua descrição do único brinquedo da menina, uma boneca que não podia sair da caixa, tem força o suficiente para que entendamos o contexto social de Brandi.

Quando sua mãe finalmente o convence de que aquela vizinhança não daria certo e vem resgatá-lo, levando sua mudança para outro apartamento, que ela própria tinha alugado, Sedaris pensa no que significaria a palavra mãe para aquela menina.

Uma pessoa que conduz você pelo caminho e ajuda você quando tem problemas – qual seria o nome que ela daria para isso? Rainha? Muleta? Professora?

É sempre com esse tipo de humor fino que o autor amarra seus textos, que nos fazem rir mais pelo choque do que pela graça.

PS: A poucos dias das eleições nos Estados Unidos, a The New Yorker nos relembrou um texto dele de 2008, mais atual do que nunca. No ensaio, ele comenta que essa é a época da corrida eleitoral em que se começa a falar sobre indecisos, que poderiam virar a corrida para um ou outro lado.

Sem citar nomes, Sedaris imaginava que estar indeciso naquela eleição – uma verdade também em 2016 – é o mesmo que, ao ser questionado em um avião se prefere massa ou frango misturado com cacos de vidro e cocô, a pessoa perguntasse como o frango é servido.

Pode até ser que seja uma forma de pular uma parte do processo, já que depois de mastigada e digerida a comida terá o mesmo fim nos dois casos, reflete o autor sobre a indecisão dos eleitores.  “Mas aí vem a parte dos cacos de vidro”. Esse é Sedaris, mais uma vez nos fazendo rir dos absurdos do cotidiano. 

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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1 Comentário

  1. Tatá, nunca li nada do Sedaris. Pela sua resenha e pelo texto da New Yorker que você linkou aqui, fiquei curiosíssima! 🙂

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