Alguns livros precisam contar com o comprometimento do leitor por algumas páginas para que ele seja de fato fisgado pela história. Outros, porém, já nos capturam na primeira linha. Nesta semana, listamos cinco obras da literatura mundial com começos marcantes, seja por anunciar o fim da morte, subverter a realidade ou, simplesmente, nos brindar com um dos mais bonitos aforismos da literatura.

1. Anna Kariênina, de Liev Tolstói: Não seria possível começar uma lista sobre inícios marcantes de livros sem prestar a devida homenagem à Tolstói. O autor russo dispensa apresentações, mas dá para ter uma ideia de seu brilhantismo só por essa verdade universal estampada na primeira página de Anna Kariênina:

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

Anna Kariênina é o nome da protagonista, presa a um casamento que está se esfacelando e em busca de mais liberdade, que ela encontra, ou supõem ter encontrado, na figura do conde Vronsky. A situação de uma mulher divorciada na Rússia czarista, porém, é um fardo insuportável para a personagem. O romance, no entanto, não se concentra apenas na história de Anna. Além de enredos paralelos sobre as outros formas de infelicidade das famílias, Tolstói discorre longamente sobre servidão e propriedade da terra, antecipando um debate que ganharia grande fôlego nas décadas seguintes.

2. Enclausurado, de Ian McEwan: Em sua palestra mais recente em São Paulo, o Fronteiras do Pensamento, Ian McEwan falou bastante sobre o realismo como ponto de partida para suas obras. McEwan pesquisa extensamente durante o processo de escrita e está atento às minúcias do entorno de seus personagens, de instrumentos médicos usados durante uma cirurgia ao processo de obtenção de energia eólica.

Por isso, Enclausurado, seu livro mais recente, criou uma espécie de frisson entre seus leitores. A primeira frase do livro nos revela um narrador no mínimo inusitado:

Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher.

McEwan não avalia que se distanciou do restante de sua obra com essa escolha. Segundo ele, a primeira sentença do livro pode causar algum impacto, mas, aceitando-se essa premissa, todo o restante do livro poderia estar no mundo do real. É o mesmo tipo de realismo adotado por Kafka, o autor de nosso próximo item na lista.

3. A Metamorfose, de Franz Kafka: Assim como a abertura de Anna Kariênina, a frase que dá início a A Metamorfose é das mais conhecidas da literatura:

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em uma cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Apesar de sua nova condição, Samsa não perde nenhum dos traços emocionais ou psicológicos que tinha quando era humano. Ou seja, ainda que sob a forma de uma dura couraça, Samsa ainda se preocupa com a família, com o trabalho, com o chefe carrasco. As metáforas subjacentes à trama já incentivaram milhares de análises, mas o impacto dessas primeiras palavras não esmorece mesmo depois da centésima leitura.

4. As Intermitências da Morte, de José Saramago: O autor português José Saramago é conhecido por suas distopias. Seu livro mais famoso, Ensaio sobre a Cegueira, mostra uma cidade que, aos poucos, é tomada por uma epidemia inusitada, no qual (quase) todos perdem a visão. Se ali Saramago retrata a tendência da humanidade a ceder à barbárie, em As Intermitências da Morte há um êxtase inicial com a notícia anunciada logo na primeira linha:

No dia seguinte ninguém morreu.

A euforia gerada pela materialização do sonho da imortalidade logo cede espaço para os problemas incontornáveis que se seguem em um mundo onde ninguém mais morre. Os bastidores da negociação política com a morte fazem deste um livro mais engraçado e bem menos exasperante do que Ensaio sobre a Cegueira, a melhor obra de Saramago.

5. Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez: O exuberante universo criado por Gabriel García Márquez nesta obra-prima da literatura mundial tem um início tão forte quanto o restante da trama.

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.

Com uma única frase, Gabo nos fisga, porque logo queremos saber os motivos pelos quais Aureliano Buendía está diante de um pelotão de fuzilamento e exatamente o que significa conhecer “o gelo”. Esse é só o início de uma saga familias em que o destino teima em se repetir, numa cidade em que o místico e o real se misturam como em poucos livros já escritos.

Depois dessa seleção, também queremos saber qual é o seu começo de romance favorito!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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