J. M. Coetzee é conhecido por ser um autor sempre na fronteira do experimentalismo, o que faz com que seja tão amado quanto controverso. Em Diário de Um Ano Ruim, por exemplo, os ensaios encomendados por um editor alemão dividem espaço, na mesma página, com uma espécie de diário do escritor e de sua digitadora, numa história entrecruzada que forma um interessante romance.

A série que compreende Infância, Juventude e Verão é uma espécie de relato biográfico, mas o narrador, em terceira pessoa, se mantém distante, frio, seco. Desonra trata das acusações contra um professor universitário que cai em desgraça, rearranja a vida no interior mas é novamente alvo de violência, num retrato da África do Sul pós-apartheid que deixa um gosto amargo na boca (mas é um dos melhores livros que já li, e que ainda pretendo revisitar).

Foe, publicado em 1986, mas lançado pela Companhia das Letras no Brasil apenas no ano passado, é mais um desses exemplos. O autor deixa a polêmica – um pouco – de lado para resgatar a história do mais famoso náufrago da literatura, Robinson Crusoé, sem abandonar suas raízes contemporâneas e questionadoras.

No relato original, publicado em 1719 por Daniel Defoe, Crusoé é um inglês estabelecido no Brasil como fazendeiro de cana-de-açúcar que decide comandar uma viagem de navio até a África para traficar escravos. Uma tempestade faz a embarcação naufragar e o único sobrevivente é Crusoé, que permanece mais de 20 anos sozinho na ilha. Sua única companhia chegará após todo esse tempo, quando ele salva a vida de um nativo, Sexta-Feira, que havia sido capturado por um grupo de canibais, transformando-o em seu criado. Anos depois desse encontro, no retorno à Inglaterra, Crusoé recupera sua fortuna, se casa e forma família.

Nesta releitura da célebre aventura, Crusoé se transforma em Cruso e o enredo ganha um terceiro personagem. Susan Barton é uma inglesa que vai para a Bahia em busca da filha, que fugiu ou foi raptada. Depois de dois anos de tentativas frustradas de encontrá-la, decide retornar à Europa, mas o navio em que rumava para o velho continente é alvo de um motim e ela acaba jogada ao mar, ao lado de seu amante, o capitão do barco. Ela sobrevive e desemboca na ilha já habitada por Cruso e por Sexta-Feira.

A versão de Coetzee também é muito mais centrada na incomunicabilidade de certas visões de mundo do que em aventuras numa ilha perdida. Para Coetzee, as marcas deixadas pelo colonialismo e pelo apartheid são indissociáveis de sua escrita. É, portanto, sob a lente do pós-colonialismo que ele reconta a famosa trajetória de Cruso e de Sexta-Feira.

Diferentemente da versão original, quem consegue retornar para a Inglaterra é Susan, levando consigo Sexta-Feira, já que Cruso morre de febre no navio que os resgata da ilha. Assim que chega a essa outra ilha, ela quer colocar no papel o período de convivência dos três no isolamento, mas a história, do ponto de vista editorial, peca pela falta de detalhes sórdidos: não há ataques de nativos ou canibais, nem descobertas de ferramentas ou grandes invenções. Sem nada de extraordinário, o enredo não atrai a atenção de Daniel Foe, o autor que ela procura para publicar o que quer contar.

Não há grandes momentos na ilha justamente porque os dias passados pelo trio no lugar são apenas pano de fundo para o real questionamento de Coetzee nesta narrativa. É na Inglaterra que as verdadeiras perguntas serão feitas. Somente na convivência forçada de Susan com Sexta-Feira a personagem entende que as verdades são muitas, e ela não pode se desfazer da sua para enfeitar seu relato.

Sua maior angústia passa a ser o fato de que Sexta-Feira não pode falar. Ele não tem língua e, portanto, não pode contar sua própria história. Não se sabe ao certo se quem o decepou foi Cruso, para submetê-lo a sua vontade, ou se foram traficantes de escravos, conforme o náufrago relata à Susan. Como ele a perdeu é um mistério que a perturba:

Foe nada respondeu e eu prossegui. “A história da língua de Sexta-Feira é uma história que não pode ser contada, ou não pode ser contada por mim. Quer dizer, muitas histórias podem ser contadas sobre a língua de Sexta-Feira, mas a verdadeira está sepultada dentro de Sexta-Feira, que é mudo. A verdadeira história não será ouvida até que por nosso próprio engenho encontremos um meio de dar voz a Sexta-Feira”.

Sexta-Feira, comenta Susan em outro trecho, não tem “defesa” contra ser remodelado pelos outros, e assim ninguém conhece verdadeiramente sua essência. Com o domínio da linguagem que lhe é característico, Coetzee evidencia a importância do domínio de discurso no relato histórico. Sexta-Feira, os nativos, o mundo colonizado não conseguem fazer sua história ser ouvida, porque os dominadores lhes tiraram o poder da fala.

Susan tem um papel intermediário nessa relação de poder. Ela representa o dominador, vê Sexta-Feira como seu servo, mas desenvolve certa empatia por um ser que em um primeiro momento lhe causava repulsa. Embora não consiga se libertar da visão do pequeno menino negro como um escravo, ela ao mesmo tempo não consegue abandoná-lo à sua própria sorte, se sente de alguma forma responsável por ele. Quer enviá-lo a África, que para ela é uma massa disforme de terra, sem pensar na individualidade de cada pedaço desse vasto continente.

Já Cruso, acostumado ao papel de dominador, faz pouco dos questionamentos de Susan sobre a justiça dos acontecimentos trágicos que envolveram seu criado antes de sua chegada à ilha:

‘Se a Providência fosse cuidar de todos nós’, disse Cruso, ‘quem restaria para colher o algodão e cortar a cana-de-açúcar? Para os negócios do mundo prosperarem, a Providência deve às vezes acordar e às vezes dormir, como fazem as criaturas inferiores’

Mesmo Susan não consegue imprimir seu próprio tom à história. A sua verdade tampouco importa para o mundo, e o livro termina sem sabermos exatamente a qual versão Foe vai se apegar. 

Embora esse não seja o livro mais poderoso de Coetzee, um autor que sabe como ninguém reinventar o romance, é mais um interessante episódio de sua trajetória remodelando a literatura. Uma meta para 2016 é voltar a mergulhar na obra deste grande narrador (aguardem a minha lista de livros para 2017!).

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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