As ruas da Paris ocupada pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial, são o palco onde se desenvolve a prosa intrincada e envolvente de Ronda da Noite, do escritor Nobel de Literatura Patrick Modiano. Embora sejam inebriantes as descrições dos bairros, dos pontos turísticos e das estações de metrô da capital francesa, a verdadeira ronda conduzida pelo escritor caminha não por essas ruas, mas pela consciência do narrador – um agente duplo que trabalha tanto para a Gestapo Francesa quanto para a Resistência.

Ao mesmo tempo em que redescobre os lugares que outrora renderam a Paris a alcunha de cidade luz, o personagem tenta reencontrar a identidade que lhe foi roubada pela extenuante tarefa de viver sempre sob uma máscara. Tal qual a capital francesa, o narrador enfrenta um período de trevas em que tudo parece ou lembra algum traço do que ele já foi, mas não é mais:

Agente duplo? Ou triplo? Eu não sabia mais quem eu era. Meu comandante, eu não existo.

A angústia do narrador o leva a um relato confessional em que se misturam cenas de ação e devaneios da memória. Depois de um período trazendo informações de um lado a outro, o personagem é encurralado. O golpe final exige que ele entregue o líder da rede de resistência ao chefe de polícia. Modiano sustenta esse suspense ao longo de todo romance, equilibrando-o com uma investigação detalhada do que se passa no íntimo do agente duplo.

Nesse processo, o passado do narrador e todos os episódios que o guiaram àquela situação são revelados, peça a peça, como em um quebra-cabeça. Essa técnica narrativa cujo ritmo é definido pelos passos imprevisíveis da memória e da consciência é uma forte característica da escrita de Modiano. Um estilo rebuscado que exige bastante do leitor. As primeiras 50 páginas de Ronda da Noite não são fáceis de superar. Em certo momento, tudo começa a se encaixar e o esforço é recompensado.

O narrador se empenha em convencer o leitor, e convencer a si mesmo, de que o que o colocou nesse jogo arriscado foi muito mais o acaso e a necessidade do que um caráter fraco ou ainda uma forte convicção política. Ora ele se justifica dizendo que precisava proteger e garantir o bem-estar de sua mãe. Ora ele invoca memórias banais de infância que realçam traços de um mentiroso habilidoso, como quem diz “eu não tinha como fugir desse desfecho, já estava escrito”. Sua tese é de que seu destino resultou de um fluxo natural e inevitável, em que suas escolhas tiveram pouco ou nenhum poder:

Eu não fui feito para tudo isso. Eu jamais pedi nada a ninguém. Eles que vieram me procurar.

Atrás desse determinismo, o narrador esconde seus remorsos e culpas. No entanto, mesmo querendo se livrar das responsabilidades de seus atos, ele não nega a podridão moral do jogo duplo a que se dedicava – os saques, a apropriação da vida e dos bens dos prisioneiros, a caguetagem, as traições. Comportamentos antes condenáveis eram agora “moeda corrente”.

O contexto da época não permitia meios termos, por isso sua posição nebulosa lhe sugava todas as forças físicas e psicológicas. Não havia espaço para sensibilidade e ternura. Essa esterilidade de sentimentos invadia as ruas, tirando todo brilho da cidade luz e das pessoas que a habitavam.

O personagem ainda ensaia alguns caminhos de redenção. Um deles é a proteção de dois personagens, Coco Lacour e Esmeralda, um idoso cego e uma criança abandonada, que entram e saem de cena durante os devaneios da consciência do narrador, deixando no ar a dúvida se aquilo era real ou invenção de uma alma perturbada que gritava por socorro.

A ocupação nazista na França é um tema bastante frequente na ficção de Modiano. Ronda da Noite é seu segundo romance e foi lançado em 1969. Ele faz parte da chamada “Trilogia da Ocupação” composta ainda por La Place de l’Étoile, de 1968, e Les Boulevards de Ceinture, de 1972.

Modiano trabalha com muita sensibilidade esse contexto que deixou marcas não apenas em quem o viveu, mas também nas gerações seguintes, da qual o próprio autor faz parte. Não à toa em 2014 sua obra foi reconhecida com o Prêmio Nobel de Literatura, “pela arte da memória com que ele evocou os destinos humanos mais intangíveis e desvelou o mundo da Ocupação”.

O escritor francês resgata as difíceis lembranças da época sob uma perspectiva que vai muito além da violência física. As agressões morais e psicológicas, como as que afligem o narrador de Ronda da Noite, são as que mais interessam à sua prosa.

Para as gerações que não viveram uma guerra mundial, com todas as suas privações, materiais e emocionais, ler o texto de Modiano é se aproximar de uma compreensão mais ampla do que foi o período.

Há um trecho que me marcou muito durante a leitura e que se repete algumas vezes ao longo do livro, com pequenas variações. O narrador, atormentado por seus fantasmas e pelos perigos que o cercam, observa seus protegidos, Coco Lacour e Esmeralda, e diz:

Eles não sabiam nem um nem outro o quanto a felicidade é frágil. De nós três, apenas eu me preocupava.

A imprevisibilidade do amanhã existe desde sempre, mas em tempos de paz essa verdade é mais suportável. O cenário de violência aniquila a trégua entre o homem e sua mortalidade. A guerra é uma exposição obscena da fragilidade da vida.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

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