Ideias sobre o significado do primeiro amor e as dificuldades de lidar com o desaparecimento das pessoas foram destaque nesta última leitura de O Amor dos Homens Avulsos, de Victor Heringer. Cada vez mais, aparecem trechos do Camilo adulto, lutando para não perder as lembranças que lhe restam de Cosme. Para a próxima semana, vamos até  capítulo 64, na página 107.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A partir de um narrador mais velho e desesperançoso com a vida que lhe resta, O Amor dos Homens Avulsos recupera o poder das descobertas e  dos inícios. Camilo e Cosmim, soltos pelas ruas do bairro do Queím, começam juntos, com o restante dos meninos do bairro, a desbravar a sexualidade.

Em uma tarde, os meninos se juntam na ex-senzala em uma rodinha, e aos poucos Camilo entende que aquilo será uma sessão de masturbação coletiva. Apesar do desconforto que o domina, a cena ganha contornos de ternura com o gesto de intimidade trocado por ele e Cosme. Enquanto os meninos tiram as calças e começam a atividade coletiva, o narrador fica perdido, sem reconhecer naqueles gestos suas próprias práticas. Com um meneio de cabeça, Cosmim lhe mostra o caminho, um momento que ficará para sempre gravado na memória do narrador.

Olhei confuso, eu não fazia assim. Mas Cosmim acudiu. “Olha”, sussurrou com a cara, e me mostrou como fazer, segurar desse jeito e mexer com a mão.

A cena também evidencia outro elemento que permeia toda a narrativa: sensações e cheiros são parte indissociável das lembranças do narrador, mesmo que a parte mais visual se perca no limbo da memória. Camilo já não lembra mais tão bem das feições de seu amigo, mas consegue recuperar com perfeição as visões dos colegas na rua depois do futebol, não mais encharcados, mas com suor seco “como sal fino, cobrindo as peles pardas e pretas com uma camada de pó esbranquiçado”.

A cena descrita no início desse post sela o início da amizade entre Cosme e Camilo, com vínculos que parecem se estreitar cada vez mais. Em uma tarde no sofá, Cosme ensaia um gesto de carinho que uma vez ele viu o pai de Camilo tomar, mas logo recua, tímido, para o seu lugar.

As lembranças ternas e suaves que o narrador guarda do menino são parte indissociável de suas recordações do primeiro amor, que ganha uma definição com ares de aforismo:

O primeiro amor é o único. Os anos, o sexo e as pequenas construções (filho, casa própria, poupança) fazem aceitar mais fácil as cópias desbotadas que a gente diz amar ao longo da vida, mas até a nossa cova aberta, esperando, fala daquela ausência. O primeiro amor só pode ser primeiro amor porque existe um segundo, claro.

Na vida de Camilo, porém, só houve Cosme, o que reforça a sensação de singularidade dessa relação para o narrador. Ao mesmo tempo, como ele já mostrou em outros trechos, há o reconhecimento de que aquela história é apenas mais uma na multidão. Em um longo trecho assemelhado à quadrilha de Drummond, mas dessa vez com personagens reais, Victor Heringer desfia nomes que reforçam a ideia de singularidade e, ao mesmo tempo, de semelhança entre as histórias de amor.

Amei o Cosmim como você amou seu primeiro amor, que se chamava Bruno ou Pablo ou Ilyich, Ricardo ou Rhana, Luciano, Eduardo, Diego ou Carlos Octávio, Kátia, Mariana, Lucas, Marisa ou Carlos Eduardo, Rafael, Raí ou Solange, ou Luíza, Fabiana, Adolfo, Lígia, Joana, Érica, Mateus. Amei como Lucas amou Sophia e Daniel amou Gabriela (…)

Todos os nomes ali contidos tiveram como fonte histórias reais, enviadas ao escritor por leitores. Em um site, Heringer pediu para que os visitantes lhe contassem o nome do primeiro amor deles. Nos agradecimentos, ele revela que, por vezes, recebeu cartas com longos enredos, mas sem nomes, o que só evidencia como precisamos desse retorno à ternura que é a paixão.

Por ser uma narrativa que explora a memória, O Amor dos Homens Avulsos trata também, por consequência, o esquecimento. A todo momento, Camilo sente um incômodo por ver que a imagem do seu primeiro amor se apaga, aos poucos, de sua memória. Ele sente falta de algo físico, como uma foto, para ajudá-lo nessa lembrança.

Ainda não está muito claro o rumo da proximidade do narrador adulto com Renato, o neto de sua babá e do assassino de Cosme. Em alguns momentos, parece que ele vê o amigo refletido no menino – talvez uma tentativa de concretizar a recordação que se mostra cada vez mais abstrata.

O desaparecimento das pessoas é um tema que apareceu fortemente na última leitura, tanto em seu significado mais literal, quanto metaforicamente. Além das lembranças que desvanecem na memória do narrador, há dois trechos que trazem à tona essa reflexão. O caso, relatado por Renato, do garoto que se perdeu no bairro e também o sonho de Camilo envolvendo Maria Aína e Cosme:

Procurava a sepultura de Maria Aína; no sonho só ela sabia onde estava o corpo do Cosme. Não encontrei porque muita gente tinha morrido por cima da minha babá, que acabou sumindo debaixo de tantas lápides novas e terras e frutas podres.

Mais do que um sumiço físico, nesse trecho, o narrador fala de esquecimento. As pessoas nascem e morrem em um ciclo que garante a eternidade da espécie, mas é impiedoso com a eternidade do indivíduo. Este sobrevive só até onde a memória permite. Como bem descreve Camilo nesta frase:

As pessoas desaparecem fácil.

Embora o narrador se ressinta por não lembrar já com tanta precisão os traços de Cosme, não é essa a percepção que o leitor tem, tamanha a sensibilidade com que Camilo conduz seus relatos sobre o amigo. Talvez ele não devesse se preocupar tanto com a perda da memória, pois o primeiro amor parece mesmo ser inesquecível.

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