[Resenha] O jornalista e o assassino

Em O Jornalista e o Assassino, a repórter Janet Malcom retoma a história de um famoso crime nos Estados Unidos para refletir sobre princípios jornalísticos e, principalmente, sobre a delicada relação moral entre jornalistas e suas “fontes”, os personagens que dão vida e cor às histórias narradas em grandes reportagens.  

A história do médico Jeffrey MacDonald, acusado e condenado pelo assassinato da esposa e das duas filhas pequenas, é o pano de fundo desse livro, mas não é exatamente essa a história que Malcom quer contar. MacDonald nunca se declarou culpado, a despeito de diversas evidências que lhe eram bastante desfavoráveis. Ao fim do julgamento, que o sentenciou à prisão perpétua, decidiu procurar alguém que pudesse fornecer a sua própria versão dos fatos. Esse alguém seria o jornalista Joe McGinniss, que havia alcançado o sucesso com a publicação de A Promoção do Presidente, um relato sobre as táticas usadas pelo então candidato à Presidência Richard Nixon para parecer menos detestável aos eleitores.

Malcom expõem o conflito ético subjacente nessa relação logo no primeiro parágrafo:

Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre de vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas.

O que dói, por parte daquele que é entrevistado, é menos uma versão pouco lisonjeira dos fatos, afirma Malcom, e mais a sensação de traição, pois muitas vezes o jornalista se mostrou, ao longo de meses a fio, simpático e solidário com seu personagem, estabelecendo um vínculo muito próximo da amizade.

Malcom sabe do que está falando. Repórter experiente e uma das mais importantes jornalistas americanas do século XX, com diversos perfis publicados na revista The New Yorker, ela foi processada por má-fé ao relatar a disputa pelo espólio de Freud. O interessante de O Jornalista e o Assassino, uma espécie de ensaio e reportagem, é que Malcom foge do dilema ético clássico do jornalismo, sobre os limites da verdade e da isenção no exercício da profissão, para outro igualmente importante: qual é a ética moral em conquistar a confiança do entrevistado para fazê-lo falar e depois ludibriá-lo?

No caso de McGinniss e MacDonalds, Malcom acredita que houve um rompimento de uma fronteira ética que já é tênue. Para a repórter, ficou claro que o jornalista se mostrou não apenas simpático com o médico e sua versão do crime, mas muitas vezes lhe sinalizou acreditar em sua inocência e na avaliação de que MacDonald havia tido um julgamento injusto. O livro publicado sobre o caso, contudo, se provaria quase uma peça formal de acusação do médico, o que levaria a mover um processo contra o jornalista, acusando-o de calúnia.

Malcom foi procurada pelo advogado de McGinniss para expor esse conflito, sob o argumento de que o processo ameaçava a Primeira Emenda, a liberdade de expressão e de imprensa constitucional nos Estados Unidos. Ao longo das páginas, Malcom analisa a relação mantida pelos dois, por meio de cartas e também de entrevistas. O que mais lhe chama a atenção é a disposição do jornalista de se colocar no lugar de ingênuo entrevistado:

Que McGinniss, que já entrevistou centenas de pessoas e conhece esse jogo até de trás para frente, tenha apesar disso se mostrado para mim como um homem na defensiva, farisaíco e assustado, só demonstra o poder dessa força.

Em outro exemplo, ela se espanta ao conversar com uma senhora chamada Lucille Dillon, uma das juradas no caso analisado. Malcom ouve embasbacada ela contar que era uma adoradora da Constituição americana, a favor da Primeira Emenda, para logo em seguida emendar que havia casado duas vezes com seu segundo marido por um arranjo financeiro, para que ela pudesse ficar com a aposentadoria dele.

Enquanto escutava Lucille Dillon, senti de maneira mais aguda que nunca o surrealismo que há no âmago do jornalismo. As pessoas contam suas histórias aos jornalistas do mesmo modo que as personagens dos sonhos transmitem as suas mensagens elípticas: sem aviso, sem contexto, sem levar em conta o quão estranhas elas vão parecer quando o que sonha acordar e repeti-las.

No livro de Malcom, não há nada de romantizado nesse relacionamento, ao contrário de representações no cinema e em séries televisivas. Ela sabe a posição de autoridade que assume perante suas fontes, qual é a natureza da relação estabelecida: o entrevistado está na posição vulnerável, sem saber de que ângulo será retratado. E, ainda assim, muitas vezes está disposto a contar mais do que seria recomendável.

Mesmo que nos espante ainda que as pessoas queiram abrir sua intimidade, não será da falta de personagens que morrerá o jornalismo, conclui ela.

E mesmo assim elas dizem sim quando um jornalista chama, e mesmo assim elas ficam espantadas quando veem o brilho da faca.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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2 Comentários

  1. Olá Tainara! Pela resenha o livro me parece um pouco mais teórico. Mas uma coisa é fato, todos tem uma história para contar e todo mundo julga que sua história é singular e precisa ser ouvida. Por isso, o jornalista tem sim um grande poder nas mãos. Abraço!

    • Tainara Machado

      29 de maio de 2017 at 03:14

      É um livro mais teórico sobre o jornalismo, sim, Maria, mas ao mesmo tempo é muito interessante por falar um pouco dos bastidos da reportagem, dessa relação entre fonte e jornalista. Além do mais, é muito bem escrito. Vale a leitura, mesmo para quem não é da área! E, como sempre, obrigada pelo comentário! 🙂

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