[Resenha] Intérprete de Males

Um casal compartilha verdades inconfessáveis à luz de velas. Uma jovem mulher decide revelar um segredo a um desconhecido. Uma menina descobre noções de identidade e pertencimento por meio de visitas cotidianas na hora do jantar. Em Intérprete de Males, livro de contos da inglesa Jhumpa Lahiri editado no Brasil pela Biblioteca Azul, os personagens precisam aprender a conviver com um mundo que lhes parece estrangeiro, mas que precisa ganhar contornos familiares.

A imigração e o choque de culturas é pano de fundo de quase todos os contos desse livro, mas as histórias narram dramas universais, como a separação, a perda, o envelhecimento e a distância. Jhumpa Lahiri, que nasceu em Londres mas vem de família indiana e hoje vive na Itália, sabe como ninguém o que é não encontrar tradução para o seu mundo no cotidiano.

Intérpretes de Males busca justamente construir essa ponte, um diálogo entre dois universos distintos e ao mesmo tempo semelhantes, marcados por chegadas, partidas e estranhamentos. É, acima de tudo, uma leitura extremamente prazerosa, pela habilidade de Lahiri em construir personagens e tramas pelas quais sentimos profunda empatia, em um ritmo compassado no qual não há espaço para atropelos, mas muito está escrito nas entrelinhas.

Esse controle sobre o ritmo, um trunfo que os autores de contos precisam saber manejar e que Jhumpa Lahiri domina com maestria, nos deixa assombrados logo no primeiro conto do livro, Uma Questão Temporária.

Tudo começa com um aviso simples, por parte da companhia fornecedora de energia elétrica. Por necessidade de um reparo na rede, a luz será cortada durante cinco dias a partir das oito da noite, por uma hora.

A notícia desencadeia uma intimidade forçada entre um casal que, descobrimos, esgarçou os laços que os uniam após uma perda trágica. Nos jantares à luz de velas que eles compartilham, vemos por meio das verdades que eles decidem contar um ao outro como as pequenas tragédias da vida podem fazer ruir um casamento.

Perguntou-se o que Shoba iria lhe dizer no escuro. As piores possibilidades já haviam lhe passado pela cabeça. Que ela tinha um caso. Que não o respeitava por ter trinta e cinco anos e ainda ser estudante. Que o culpava por estar em Baltimore, como a mãe dela culpava. Mas ele sabia que essas coisas não eram verdade. Ela era tão fiel quanto ele. Acreditava nele. Ela é que havia insistido que fosse para Baltimore. O que eles não sabiam a respeito um do outro?

Com diálogos bem construídos e um equilíbrio entre o desenrolar de fatos e a volta ao passado para contextualizar o leitor, esse conto é a obra-prima de Intérprete dos Males, do tipo que nos faz terminar com lágrimas de olhos porque, às vezes, não é mesmo possível distribuir culpas. O destino quis assim.

As outras histórias nem sempre tem a força desse primeiro conto, mas continuam a nos atrair para o livro, fazendo dessa uma leitora difícil de não devorar. Entre as histórias de um ou outro lado do Pacífico, Intérprete de Males é também um delicioso mergulho na cultura indiana, despertando curiosidade e compaixão em um mundo em que esses dois sentimentos dão, cada vez mais, lugar ao medo e ao ódio.

Das pulseiras de casamento ao hábito de tirar os sapatos ao entrar em casa, ou o fato de que os americanos dirigem do lado esquerdo, e não direito do carro, os choques culturais são uma via de duas mãos, e é preciso aprender a conviver com o que nos parece estranho em um primeiro olhar.

Para desmistificar as diferenças, dois dos contos no livro são narrados pelo olhar mais ingênuo e, ao mesmo tempo, mais disposto a se enxergar por outras lentes das crianças. A Senhora Sen é contado sob o ponto de vista de Eliot, um menino em idade escolar que passa a ter uma nova babá: a senhora Sen, uma mulher indiana que veio para os Estados Unidos para acompanhar o marido e vive uma vida de certo isolamento em sua casa.

O menino observa os hábitos da senhora Sen, da tinta que ela passa na raiz dos cabelos por ser casada a uma faca arredondada que ela usa para descascar uma miríade de legumes, ou então desossar pedaços  de frango para o jantar. Para Eliot, ela parece estar no processo de preparação para um banquete noturno, mas é apenas o jantar do casal. Para o menino, acostumado a uma refeição que se resume a pão com queijo ou pizza, todo o preparo do jantar é hipnotizante.

Outros aspectos culturais também lhe despertam atenção. A sra. Sem, certa vez, lhe pergunta o que os vizinhos fariam se a ouvissem gritar, e relembra as constantes visitas e festas a que estava habituada “lá em casa”. O menino relembra então uma festa de seus vizinhos e a reclamação da mãe para a polícia, de que o barulho estava incomodando.

Eliot entendeu que, quando a sra. Sen falava lá em casa, queria dizer a Índia, e não aquele apartamento onde ela ficava cortando vegetais.

A convivência de mútuos aprendizados entre os dois acaba com um pequeno acidente, sem mais gravidades. Nessa despedida, os dois reassumem sua vivência solitária. Nem sempre é preciso estar muito longe de casa para se descobrir sozinho.

Em Quando o Senhor Pirzada Vinha Jantar, é a vez de Lilia narrar a história do sr. Pirzada, um bengali que foi companhia na mesa de jantar em sua casa durante alguns meses. Lilia é filha de indianos, mas nasceu nos Estados Unidos, e escuta com curiosidade as explicações de seu pai sobre a independência da Índia, do Paquistão, de Bangladesh.

Ele me contou que, durante a Partição, hindus e muçulmanos punham fogo uns nas casas dos outros. Para muitos, a ideia de comer um na companhia do outro ainda era impensável.

Para mim não fazia sentido. O sr. Pirzada e meus pais falavam a mesma língua, riam das mesmas piadas, pareciam mais ou menos iguais.

O sr. Pirzada, nos Estados Unidos por uma bolsa de estudos, acompanha com aflição, diante do noticiário televiso, os acontecimentos em Daca, onde ficaram sua mulher e suas sete filhas, das quais ele mal tem notícia. É a partir dessa história que Lilia reflete sobre saudades e ausências.

A História com H maiúsculo e seus reflexos sobre a vida cotidiana das pessoas também aparece em Um durwan de Verdade. A Partição, o conflito pela independência do Paquistão, desterra uma das personagens que nos desperta mais compaixão nesse livro. A varredora de escadas Buri Ma não cansa de remoer seu passado de luxo e glórias, antes de perder tudo e ser deportada de Calcutá.

Nessa história ambígua, na qual seu status anterior é constantemente colocado em dúvida pelo moradores do prédio em que varre as escadas, sua existência volta a ser de refugiada, mas agora por um novo motivo: o prédio em que ela atua como uma espécie de zeladora agora quer um durwan (porteiro) de verdade, depois que rivalidades exaltadas pelo enriquecimento de um dos moradores levam ao roubo de uma pia instalada na área comum da habitação.

Mais uma vez, Jhumpa Lahiri nos mostra que nem sempre precisamos atravessar continentes para nos sentirmos expatriados.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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4 Comentários

  1. Louca pra ler esse dela, mas ainda tem que encomendar. Aqui em Brasília tá difícil de achar. Adorei o Xará que veio pela tag. Muito obrigada pela resenha.

    • Ah, é ótimo! Gostei tanto que comprei O Xará e Aguapés! Vi que ela também escreveu o prefácio para o novo livro da Rebecca Solnit! Virei fã! Que bom que você gostou da resenha!
      Muito obrigada, Aletheia!
      Beijos,
      Tainara

  2. Perfeita sua resenha. O livro é isso mesmo. Destacaria também o clima de melancolia que predomina nos contos. Acredito que ajuda a sentir o imaginário daqueles imigrantes em um país distante tentando se reconectar.

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