[Resenha] Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas

Na semana passada, a literatura brasileira perdeu uma de suas vozes contemporâneas mais importantes. Elvira Vigna morreu aos 69 anos, depois de uma longa e secreta luta contra o câncer. Em meio a essa árdua batalha, Elvira publicou Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas pela Companhia das Letras. Se um título forte como esse já desperta a curiosidade dos leitores, as páginas seguintes atiçam ainda mais a mente de quem mergulha nesse livro.

Elvira Vigna, se percebe pelas primeiras linhas, não é uma autora qualquer. Suas frases são curtas, duras. Compreender seu significado exige do leitor entrega que é quase um processo de escrita, no esforço de buscar o não dito nas entrelinhas.

Está escuro e tenho frio nas pernas. No entanto, é verão. Outra vez. Deve ser psicológico. Perna psicológica.
Faço hora, o que pode ser dito de muitos outros momentos da minha vida.
Mas nessa hora que faço, vou contar uma história que não sei bem como é. Não vivi, não vi. Mal ouvi. Mas acho que foi assim mesmo.

A trama do livro traz personagens banais vivendo o dia a dia, na confusão que é tentar lidar cotidianamente com expectativas, afeto, desilusões. O palimpsesto de putas a que o título faz referência é a história de João, um executivo de certo sucesso na Xerox, a empresa de cópias que foi do auge ao ocaso em poucos anos. Como atividade transgressora e libertadora, João sai com garotas de programa sempre que viaja a trabalho. Casado, ele procura compartimentar sua vida, mas o acaso sempre está à espreita e altera o destino que traçamos em linha reta. Como reflete a  narradora, uma arquiteta que se aproxima de João por causa de seu sonho  de reformar uma livraria, na nossa existência cotidiana não existem as linhas retas que  pretendemos traçar no dia a dia, na volta para casa.

A estética poderosa de Elvira Vigna, com sua linguagem desprovida de adjetivos e bastante direta, logo substitui o desfile de garotas das primeiras páginas. Personagens antes secundários ganham relevo e a história se torna inebriante, quase inescapável. Fica difícil fechar o livro. A mais banal das passagens, nas mãos de Elvira, fica assim:

Então tem também a pressa de mulheres e homens que saem, exaustos, depois de um dia inteiro de trabalho, com as compras necessárias, rumo à escuridão. São heróis, dando os passos que faltam para a linha de chegada sabendo que estão sempre em último lugar. Uma corrida olímpica que acontece todos os dias em direção à linha de chegada. E a linha de chegada é uma bandeja de comida em frente à TV.

A banalidade da vida, descrita assim, é quase como um choque. Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, contudo, vai muito além. Ao colocar de pé relações circulares, Elvira discute fragilidade e submissão, arrogância e poder, o feminino e masculino e a invisibilidade que muitas vezes domina o modo como nos relacionamos com o outro. Todos são obrigados a enxergar o que se pretendia esconder.

Ao ler Elvira Vigna pela primeira vez, é difícil deixar de enxergar os ecos de sua literatura em outros escritores brasileiros contemporâneos, notadamente Michel Laub. O autor de Diário da Queda e Tribunal da Quinta-Feira também é um escritor de frases curtas, ritmadas, adepto das repetições que, sempre com alguma variação, somam sentido à narrativa.

Em seu obituário para a revista piaui, o escritor e roteirista Mateus Baldi recorreu a uma história contada por Schneider Carpeggiani, editor do Suplemento Pernambuco, para ilustrar o que é a escrita  de Elvira:

– Elvira deu uma verdadeira aula de ficção quando lembrou de uma história de quando era criança. Ela estava brincando do lado de fora do prédio com uma amiga e então cada uma entrou em seu respectivo edifício. Elvira viu um sofá cair do prédio da amiga e pensou, Não vou dizer que caiu um sofá do prédio dela. Quando chegou em casa, descobriu que havia sido uma noiva. Essa é uma definição forte da literatura da Elvira. A gente nunca sabe se voou um sofá ou uma noiva.

E é assim mesmo. Elvira deixa respiros, espaços, silêncios a serem preenchidos pelos leitores. São detalhes e possibilidades, e muitas vezes cabe ao leitor decidir que rumo tomou aquela cena. Sabemos muito pouco no começo e continuamos a procurar significados ainda na última página. Elvira Vigna nos faz pensar.  Nunca sabemos tudo.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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1 Comentário

  1. muito interessante seus conteúdos gostei muito deles. Parabéns 🙂

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