Até o momento, Peso foi o conto que mais escancarou a questão feminina, ao abordar  um tema bastante sério e urgente: a violência doméstica contra mulheres. Mantendo o estilo que já conhecemos, de revelar a história aos poucos em relatos que oscilam entre passado e presente, Margaret Atwood nos presenteia com mais uma narrativa de altíssima qualidade. Para a próxima semana, vamos até a página 214, com a leitura do conto que intitula o livro – Dicas da Imensidão.      

Mariane Domingos e Tainara Machado

A narradora do conto Peso é marcada pelo cansaço. Uma fadiga em relação à vida, às pessoas e à crueldade humana. Logo nas primeiras frases, ela deixa isso claro:

Estou ganhando peso. Não estou ficando maior, apenas mais pesada. (…) O peso que sinto está na energia que consumo para me locomover: andar pela calçada, subir a escada, ao longo do dia. Está na pressão em meus pés. É uma densidade nas células, como se eu bebesse metais pesados. Nada que se possa medir, embora existam as pequenas protuberâncias de carne habituais que precisam ser tornadas mais firmes, mais musculosas, mais trabalhadas com malhação. Trabalhada. Tudo está se tornando trabalhoso demais.

À medida que a história avança, descobrimos que essa apatia é resultado de uma perda traumática. Molly, sua amiga, foi brutalmente assassinada pelo marido abusivo. Desde então, a personagem lidera uma fundação, chamada A Casa de Molly, que arrecada fundos para o combate à violência contra a mulher.

Atwood revela o enredo em pílulas, alternando passado e presente, no mesmo estilo que já vimos nos outros contos. Dessa forma, descobrimos que as duas amigas se conheceram ainda na faculdade, época em que compartilhavam a origem humilde e também os sonhos de justiça:

Queríamos justiça e jogo limpo. Achávamos que era para isso que as leis existiam.

Éramos corajosas, mas tínhamos entendido mal. Não sabíamos que tínhamos de começar pelos juízes.

A vida adulta as levou para caminhos diferentes. Enquanto a narradora seguiu uma carreira menos idealista, Molly se dedicou à defesa dos desfavorecidos. Entre seus clientes, estavam, sobretudo, mulheres vítimas de agressão que não podiam pagar por serviços jurídicos.

Nesse contexto, não foi sem surpresa que a narradora viu a amiga seguir o caminho tradicional do casamento com filhos. Esse era um destino que a personagem havia imaginado para ela, não para Molly. O desfecho não poderia ter sido mais trágico.

Com a morte da amiga, ela se sente no dever de honrar a memória de Molly, dando continuidade, de alguma forma, ao seu trabalho. Mas a narradora está longe de ser uma personagem idealista. Ela acredita na importância da causa, mas não consegue esconder sua desesperança em relação ao poder de transformação da humanidade. Em outras palavras, parece não ter fé que as pessoas, em especial os homens, irão um dia compreender o valor e a urgência dessa luta.

A crueza com que ela descreve os meios que utiliza para conseguir as doações – relações extraconjugais e chantagem de potenciais doadores – revela seu perfil prático e nada romantizado. O dinheiro não vem sem segundas intenções e ela está pronta para criar esse “interesse”, porque sabe que a causa em si não leva ninguém, sobretudo homens endinheirados que levam vidas hipócritas, a mexer no bolso.

A questão da desigualdade de gêneros permeia toda narrativa, desde o tema central da história – a agressão fatal contra Molly – até trechos mais sutis, como este em que Atwood ironiza a “escada” mais longa que as mulheres têm que percorrer diariamente para chegar ao mesmo topo dos homens:

Molly veio me procurar em meu escritório. Não telefonou antes. Isso foi logo depois de eu ter deixado meu cargo de lacaia de alta classe na companhia e ter aberto minha firma. Agora, tinha meus lacaios e estava lutando com o problema do café. Se você é mulher, as mulheres não gostam de vir lhe trazer café. Os homens também não.

Apesar de todo o pessimismo (ou seria realismo?) da narradora quanto a essa temática, a personagem é determinada, prática e leva seu projeto adiante com sucesso. A cada dia, o peso da perda irreversível da amiga, do mundo injusto para as mulheres e da desesperança na humanidade lhe cai sobre os ombros e a torna mais lenta, mas não a derruba. Sutilmente, Atwood nos chama – principalmente nós, mulheres – para insistir nessa luta, que é pesarosa sim, mas imprescindível.

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