A América se encontrava no limiar do século XX, era uma nação de engrenagens a vapor, locomotivas, naus aéreas, motores a combustão, telefones e prédios de 25 pavimentos.

E o que se escondia por trás de todo esse progresso? É isso que nos mostra o escritor americano E. L. Doctorow no ótimo romance Ragtime. Dois núcleos de personagens sem nomes conduzem essa narrativa que poderia ser a de qualquer americano que viveu o período.

A família de classe média alta de Papai, Mamãe, Vovô, Irmão Mais Novo e Menino – sim, é dessa maneira genérica que eles são identificados – representa a parcela que se beneficiou financeiramente do progresso capitalista, embora não se possa dizer o mesmo do seu equilíbrio psicológico.

Papai, o típico self-made man americano, é dono de uma indústria lucrativa de flâmulas e fogos de artifício. Homem de negócios catequizado pela escola da meritocracia, ele cultiva excentricidades e mantém um distanciamento burocrático da família, gerindo-a como uma empresa, a ponto de não enxergar as ideologias, paixões e opiniões, contrárias ao seu próprio estilo de vida, que florescem debaixo do seu teto.

No caminho desse clã, aparecem outros personagens como Sarah e Coalhouse Walker, com realidades totalmente diversas. Ela, uma jovem negra pobre e com um filho nos braços. Ele, um músico negro proeminente do ragtime, que desafia, com seu vocabulário refinado, suas roupas alinhadas e seu Ford modelo T, a configuração social que a maioria dos brancos havia desenhado para o mundo. Seu sucesso incomoda aqueles que imaginavam, para os negros, uma liberdade mais teórica do que prática.

A hipocrisia da sociedade igualitária americana não demora a aparecer no romance de Doctorow quando esses dois personagens são levados ao extremo por uma sucessão de injustiças. Quando a lei lhe dá as costas, Coalhouse busca caminhos alternativos e moralmente condenáveis para ser ouvido, mostrando quão fácil é para alguém que tem direitos julgar as atitudes desesperadas dos esquecidos pela justiça:

Ou será a injustiça sofrida um universo visto ao espelho, com as leis da lógica e os princípios da razão opostos aos da civilização?

E o sonho americano não esbarrou apenas no racismo. A modernidade das engrenagens camuflava patrões contando fortunas e operários, moedas. O surgimento dos movimentos sindicais não passa despercebido por Doctorow. A família de Tateh e Mameh (papai e mamãe, em iídiche) são os representantes da classe operária e dos imigrantes nesse romance. A nação construída por estrangeiros, afinal, não foi assim tão acolhedora quanto a História faz parecer. Tateh e a filha, assim como Sarah e Coalhouse, têm seus limites testados e encontram a saída bem longe das repetições alienadoras das linhas de produção.

Um dos pontos mais interessantes deste romance de Doctorow é que as histórias desses personagens não se cruzam apenas entre si, mas também com figuras históricas reais, como o empresário Henry Ford, a anarquista Emma Goldman, o milionário J. P. Morgan, o famoso mágico Harry Houdini e a cantora e modelo americana Evelyn Nesbit.

Doctorow caminha, brilhantemente, no limiar da ficção e da realidade, construindo, a partir de personagens reais, situações que não existiram – mas que poderiam ter existido – tamanha a realidade que transmitem. Com linguagem simples, frases curtas seguidas de parágrafos longos, e abrindo mão dos diálogos, ele constrói um romance original tanto em forma quanto em conteúdo.

Em Ragtime, encontramos uma rica e bem construída análise da sociedade, da economia e da política americana do final do século XIX, além de uma cadência narrativa primorosa, que faz jus ao título do romance. O ragtime é um gênero musical criado por comunidades afro-americanas no período retratado no romance e é caracterizado pelo uso da síncope – a execução de um som em tempo fraco que se prolonga até o tempo forte, causando uma sensação rítmica diferente. Neste trecho, em que Coalhouse mostra seu talento musical, a essência do ragtime é expressa:

O pianista sentava-se rígido diante do teclado, as longas mãos escuras de unhas rosadas produzindo sem esforço aparente os grupos de acordes sincopados e as marcantes oitavas. Era uma robusta composição, música vigorosa que despertava os sentidos e não se imobilizava por um só instante.

Assim podemos definir o romance de Doctorow – ele envolve o leitor com uma simplicidade que parece não lhe exigir muito esforço e, nota a nota (ou palavra a palavra), alcança um impacto estrondoso.

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Mariane Domingos

Mariane Domingos

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