Para os leitores, escritores são quase criaturas mágicas: se alimentam de literatura e habitam um mundo paralelo, repleto de personagens fascinantes e histórias fantásticas, com uma rotina intrigante. Sabemos, claro, que não é bem assim. A escrita é um ofício solitário, que exige disciplina e rigor. Ainda assim, não deixamos de nos encantar ao entender de onde vem a inspiração para as histórias que acabam povoando a nossa imaginação. Na Lista da Semana, selecionamos cinco livros que tratam da vida e do ofício de escritor.

1. Romancista como Vocação, de Haruki Murakami: O popular autor japonês de clássicos como 1Q84 e Dance Dance Dance alterna neste livro dicas sobre escrita e memórias de seu processo de formação. Murakami relembra as condições que o levaram a escrever seu primeiro livro, Ouça a Canção do Vento (recentemente publicado pela Companhia das Letras no Brasil), quando tinha quase 30 anos, e como sua vida acabou mudando por completo quando esse romance ganhou o prêmio Gunzô. Segundo ele, esse golpe de sorte contribuiu muito para que ele acabasse se tornando um escritor profissional, embora tenha diminuído a importância de outros prêmios literários (há anos, Murakami aparece na lista de potenciais laureados com o Nobel de Literatura).

O escritor nega uma visão romanceada da vida de autor. Embora não chegue a falar que esse é um ofício como qualquer outro, Murakami fala muito de como essa é uma atividade que, ao menos para ele, exige disciplina e rotina. Quando ele está trabalhando em um livro, escreve cerca de seis horas por dia, ou pelo menos duas páginas. Murakami, que é maratonista, também não descuida do físico e se exercita cerca de uma hora diariamente. A vida sem grandes sobressaltos, contudo, não quer dizer que ele não preste atenção a todos os fatos que o rodeiam, em busca de ideias sobre o que escrever:

Voltando a falar sobre filmes, em E. T., o Extraterrestre, de Steven Spielberg, há uma cena em que o E.T. junta uns entulhos que estavam na garagem e improvisa um comunicador. Você lembra? Não me recordo direito dos detalhes pois faz muito tempo que assisti, mas ele combina aleatoriamente artigos domésticos como guarda-chuva, luminária, pratos, toca-discos etc., e constrói o aparelho rapidamente. Apesar de improvisado, o artefato funciona bem, e o E.T. consegue se comunicar com seu planeta natal, a muitos anos-luz de distância. Fiquei impressionado com aquela cena e, na minha opinião, acho que excelentes romances são feitos daquele jeito. A qualidade dos materiais não é muito importante. O indispensável é a mágica. Ela pode criar um “aparelho” incrivelmente sofisticado, mesmo se tivermos apenas materiais cotidianos e usarmos somente palavras simples.

Sempre com uma linguagem direta, Murakami sofreu muitas críticas por seu estilo. Em Romancista como Vocação, ele ressalta que não é preciso recorrer a estruturas complexas para escrever bem.

2. Viver para Contar, de Gabriel García Márquez: Viver para Contar não é exatamente um livro sobre o processo de escrita, mas, ao narrar suas memórias de infância e adolescência, Gabo nos leva a um mergulho no cenário que deu vida a grandes clássicos da literatura latino-americana do século XX. Impossível não enxergar, nas descrições de seus familiares e de outras figuras que povoaram seus primeiros anos de vida, os personagens de Cem Anos de Solidão, Do Amor e Outros Demônios, de Amor nos Tempos do Cólera. Tudo isso com o estilo impecável de Gabriel García Márquez.

Gabo começa o livro com uma viagem decisiva na formação de suas memórias, para Aracataca, a cidade de seus avós, de onde saiu aos oitos anos. Ao voltar, quinze anos depois, o autor encontrou sua fonte de inspiração. Gabo também lembra a todo tempo o quanto a leitura, além das memórias, foi importante para sua escrita. Quando criança, ele lia tudo que estava a seu alcance, e um dos romances que mais o influenciaram foram as histórias narradas todas as noites por Sherazade, em Mil e Uma Noites. Foi, muito provavelmente, ali que começou a ser gestado o realismo mágico que enfeitiçaria tantos leitores nos anos seguintes.

Já na juventude, em seus primeiros anos como jornalista em Barranquilla, Gabo já se arriscava a escrever alguns contos e a pensar sobre o ofício de autor.

Muitos dos romances que eu lia e admirava naquele tempo só me interessavam por causa de suas lições técnicas. Quer dizer: pela sua carpintaria secreta. Das abstrações metafísicas dos três primeiros contos até os três últimos da época, encontrei pistas precisas e muito úteis da formação primária de um escritor. Não havia me passado pela cabeça a ideia de explorar outras formas. Pensava que conto e romance não eram apenas dois gêneros literários diferentes, mas dois organismos de natureza distinta que seria funesto confundir. Hoje continuo acreditando nisso, e mais convencido que nunca da supremacia do conto sobre o romance.

Viver para Contar foi pensado como o primeiro volume de uma autobiografia que se estenderia para outros livros. Por isso, esse título acaba com a mudança de Gabo para a Europa. É, ainda assim, leitura inesquecível para quem procura saber mais sobre o processo de criação de um dos maiores autores do século passado.

3. A Zona do Desconforto, de Jonathan Franzen: Bem menos à vontade em sua própria pele do que Gabriel García Márquez, Jonathan Franzen relata, e A Zona do Desconforto, memórias de sua infância, quando fazia de tudo para não ser reconhecido como o menino que tinha medo de aranha, da escola, de professores de música, de boomerangues e das garotas populares.

Com tantas fobias desenvolvidas em um ambiente familiar austero e controlador, é interessante ver como Franzen encontrou seu espaço pessoal na literatura, onde conseguiu, inclusive, aprender a rir de si mesmo.

Nesses anos de formação de caráter, também conseguimos ver muito do material autobiográfico que seria usado posteriormente em As Correções, Liberdade e, mais recentemente, Pureza. A conflituosa relação com a mãe é um desses temas que perpassam toda a sua obra ficcional e aparecem, claro, em A Zona do Desconforto:

Saber que algo está fadado ao fracasso e ainda assim tentar alegremente salvá-lo de qualquer forma: essa era uma característica da minha mãe. Eu tinha finalmente começado a amá-la perto do fim de sua vida, quando ela estava passando por um ano de quimioterapia e radiação e ao mesmo tempo vivendo sozinha. Eu havia admirado sua bravura. Eu havia admirado sua vontade de se recuperar e sua extraordinária tolerância à dor. (…) Mas mesmo perto do fim, eu não conseguia tolerar ficar com ela por mais de três dias consecutivos.

4. As Entrevistas da Paris Review, volume 1, vários autores: Embora esse seja um compilado de grandes entrevistas publicadas na revista literária americana Paris Review nas últimas décadas, o livro é imperdível para quem quer se aprofundar no pensamento dos autores sobre seu ofício.

As entrevistas da Paris Review são uma instituição à parte no mundo literário, tanto pela seleção de entrevistados – apenas nesse primeiro volume, temos Primo Levi, William Faulkner, Amos Óz, Ian McEwan, Doris Lessing e Jorge Luis Borges -falando sobre método de trabalho, processo de escrita, relação com a literatura, influências e, claro, o poder do passado e das memórias em suas obras.

Um dos temas que aparece constantemente nessas entrevistas é como lidar com familiares, amigos, pessoas queridas que, por vezes, são transformados em personagens nos romances, nem sempre da forma mais abonadora. Sobre esse assunto, Primo Levi comenta:

Entrevistador: E quanto ao personagem que inventa a reunião dos colegas de faculdade, no mesmo livro?

Levi: Bem, esse é uma invenção. É prudente, quando o personagem não é grande coisa – é estúpido ou atrapalhado – reconstruí-lo usando partes daqui e dali. Peguei a testa de um, o queixo de outro, os tiques de um terceiro e assim por diante. E, apesar de tudo…

Entrevistador: Todos dizem: “Sou eu! ”.

5. Os Fatos – A Autobiografia de um Romancista, de Philip Roth: Philip Roth é um dos autores mais emblemáticos e controversos a despontar na cena literária americana nos últimos cinquenta anos. De família judaica, Roth sempre escreveu sobre o processo de aceitação e formação de identidade em meio às influências por vezes contraditórias de seu país natal e das tradições culturais e religiosas de sua família. Seus romances são incômodos porque falam de desejos recônditos, de hábitos banidos pela convivência social, mas ainda vivos na esfera privada.

Boa parte de sua ficção, como na maior parte das vezes, está baseada em suas próprias experiências. Por isso, o mote de sua autobiografia é surpreendente. Aqui, ele tenta limpar suas memórias dos traços ficcionais que foram adicionados ao longo de uma vida, para reconstituir as experiências originais que acabaram jorrando em sua ficção.

No passado, como você sabe, os fatos não foram mais que anotações num caderno, meu aprendizado em matéria de ficção. Para mim, como para a maioria dos romancistas, todos os eventos genuinamente imaginativos têm origem lá, nos fatos, em coisas concretas e não ideológicas ou abstratas. No entanto, para minha surpresa, parece que agora comecei a escrever um livro realmente de trás para a frente, pegando aquilo que já imaginei e, por assim dizer, desidratando-o a fim de restaurar minha experiência original, a realidade pré-ficcional.

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Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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