Em É Isto Um Homem (que a Mari já resenhou aqui), o autor italiano Primo Levi encerra seu relato sobre os oito meses que  passou como prisioneiro no campo de concentração de Auschwitz com a morte de um de seus companheiros de enfermaria, Sómogyi, e a chegada dos russos. As duas últimas frases guardam um tom razoavelmente otimista, que contrasta com a dureza do restante do relato:

Arthur reuniu-se alegremente com a sua família e Charles recomeçou a ensinar; já trocamos longas cartas. Espero poder revê-los um dia.

Levi retoma esse desfecho em A Trégua, uma narrativa igualmente dolorida de uma história menos conhecida sobre a Segunda Guerra Mundial: o difícil retorno dos prisioneiros dos campos de concentração para casa.

A imagem da chegada de um grupo de quatro homens russos armados, em cavalos, é seguida por um dos relatos cortantes de Levi, que despe sua narrativa de adjetivos para nos fazer ver a crueza dos sentimentos que prevalecem em tempos em que o inimaginável subjuga a humanidade:

Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados, não somente por piedade, mas por uma confusa reserva, que selava as suas bocas e subjugava os seus olhos ante o cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as seleções, e todas as vezes que devíamos assistir a um ultraje ou suportá-lo: a vergonha que os alemães não conheceram, aquela que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem (…)

Assim que o comando dos alemães é desmantelado, Levi é tomado de uma dor nova, que ele próprio define como a dor do exílio, da juventude perdida, que irá marcar esse segundo relato. A experiência no campo de concentração seria uma carga emocional e física com a qual os soldados responsáveis por conduzir os ex-prisioneiros não saberiam como enfrentar. Do primeiro banho às contínuas transferências e andanças, tudo soa como uma tentativa profilática de limpar as memórias de um período que seria, de toda forma, incorporado à consciência coletiva como um dos momentos mais atrozes na história da humanidade.

O terreno arrasado pelos alemães deu lugar a uma liberdade fugidia, incompleta. Os prisioneiros do campo de concentração continuavam a ser guiados em uma viagem sobre a qual tampouco tinham muita escolha. De Auschwitz, Levi foi para a Cracóvia e seguiu de trem pelo leste europeu para Odessa e depois para a Rússia Branca, em uma peregrinação que duraria meses e seria acompanhada, dessa vez, de “outros  medos, outras fomes”.

Tínhamos a esperança de uma viagem breve e segura, para um campo preparado para nos receber, para um substituto aceitável de nossas casas; e tal esperança fazia parte de  uma esperança maior, a de um mundo reto e justo, milagrosamente restabelecido em seus fundamentos  naturais após uma eternidade de transtornos, erros e tragédias, após  o tempo de nossa longa paciência. Era uma esperança ingênua, como todas aquelas que repousavam em cortes muito claros entre o bem e o mal, entre o passado e o futuro: mas era o que então vivíamos.

Depois do dia da vitória, em 8 de maio de 1945, o pesadelo de Primo Levi deixaria de ser dominado pela Alemanha fascista para ser ditado pela burocracia sem fim da União Soviética. De documentos de marcha forjados instantaneamente a um salvo-conduto que nunca chega, os italianos que partiram em comboio da Cracóvia em direção à Odessa e ao mar acabaram rumando em direção ao Norte, para o inverno imprevisível, em que a liberdade valia o fim da fome, mas não o retorno ao Ocidente e à casa.

Durante meses, os italianos ficariam vagando por campos em que  o maior inimigo não era nem a fome nem o frio, mas o tédio, que também pode ser avassalador. Apenas em setembro – nove meses depois da libertação do campo de Auschwitz – Levi e seus companheiros começariam a partida rumo à Itália de fato, em uma longa viagem pela malha ferroviária europeia. Antes de chegar de fato à casa, contudo, o autor ainda desembocaria em Munique.

O contato com os alemães é dos poucos momentos em que Levi deixa-se dominar pela emoção, em um relato que na maior parte do tempo nos envolve mais pela objetividade com que ele narra acontecimentos tão sombrios.

Sabiam, “eles”, a respeito de Auschwitz, da tragédia silenciosa e cotidiana, a um passo de suas portas? Se sabiam, como podiam caminhar pelas ruas, voltar para casa e olhar os próprios  filhos, transpor os umbrais de uma igreja? Se não sabiam, deviam, deviam sagradamente ouvir, saber de nós, de mim, tudo e depressa: eu sentia o número tatuado no braço queimando como uma chaga.  

Em 19 de outubro de 1945, Levi retornaria para Turim, meses depois da libertação do campo de Auschwitz. Encontraria cama feita, família, amigos, conforto, mas não se desfaria nunca do sonho em que toda essa realidade desmoronava para dar lugar ao campo de concentração e à ordem de despertar: Wstavach. Uma das grandes testemunhas das atrocidades de que a humanidade é capaz, o autor se suicidaria em 1987.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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