Obra-prima da escritora britânica Virginia Woolf, Orlando (Editora Penguin-Companhia, 337 páginas) é magistral não apenas pela trama, bastante inventiva, mas também pela sofisticação e sensibilidade do texto de Woolf, capaz de descrever com naturalidade os sentimentos e percepções mais complexos.

Orlando é um nobre da corte inglesa, que tem ótimas relações com nomes poderosos, até mesmo com a rainha, que parece hipnotizada pela sua aparência estonteante. As mulheres se dobram aos desejos do jovem. O que não faltam são pretendentes dispostas a dividir riqueza e prestígio com ele. Os homens, por sua vez, também não deixam de admirá-lo e respeitá-lo pelas suas posses e influência. No entanto, Orlando não opta pelo caminho fácil. Ele se apaixona por uma nobre russa, de temperamento forte, e o romance não termina como ele gostaria.

Sentindo-se preterido, sensação que não lhe era comum, Orlando se enclausura em seu castelo, disposto a se dedicar à literatura, gosto que cultivava há muito tempo, mas que não era considerada atividade digna para nobres. A paixão pela arte acaba por decepcioná-lo também:

Cedo, no entanto, se deu conta de que as batalhas que Sir Miles e os demais haviam travado contra cavaleiros de armadura para se apoderar de um reino não foram nem de longe tão árduas quanto a que agora empreendia contra a língua inglesa para conquistar a imortalidade.

Orlando decide, então, partir para Turquia em uma missão como embaixador. É nessa época que a grande transformação acontece: um dia, ele acorda em um corpo de mulher. Diferente de outras tramas em que a mudança apaga a vida anterior, no romance de Woolf, o personagem conserva todas as suas memórias.

Dotado de imortalidade, Orlando atravessa mais de três séculos, da era elisabetana aos anos 20, observando, com muita sagacidade, as fronteiras físicas e emocionais entre o masculino e o feminino.

Dos pequenos gestos a situações mais complexas, Woolf coloca em pauta a desigualdade de gênero e a sexualidade. Como é encarar o mundo sendo uma mulher, depois de já ter vivido como um homem? As linhas que separam os dois sexos são mesmo intransponíveis? Para Orlando, o corpo não devia representar nenhuma barreira à sua personalidade e aos seus desejos:

E, como todos os amores de Orlando haviam sido mulheres, agora, devido à condenável demora da condição humana em se adaptar às convenções, conquanto ela própria fosse mulher, foi uma mulher que ela amou; e, se a consciência de ser do mesmo sexo teve algum efeito, foi o de estimular e aprofundar aqueles sentimentos que tivera quando homem, pois mil sugestões e mistérios, antes incompreensíveis, agora se aclaravam. A penumbra que aparta os sexos e permite a proliferação de incontáveis impurezas havia sido removida.

Se hoje esse assunto ainda é atual e tabu, imagine no começo do século XX, quando o livro foi publicado. Woolf construiu, assim, um dos personagens mais brilhantes e paradoxais da literatura. No prefácio dessa edição da Penguin-Companhia, descobrimos que Orlando foi inspirado na amiga íntima e poeta aristocrática Vita Sackville-West, por quem Woolf estava apaixonada.

Por meio de Orlando, a escritora descrevia a beleza que enxergava em Vita. Mas o fato é que, para nós leitores, nesse romance, só é possível vislumbrar a exuberância de Woolf, uma mulher de vanguarda que, certamente, revolucionou, com sua literatura feminista, a sua época e a nossa.

Mariane Domingos

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Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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