[O Retrato de Dorian Gray] Semana #2

Depois de um ótimo prefácio, que é quase um ensaio de Oscar Wilde sobre a arte, entramos na trama desse clássico da literatura em língua inglesa. Para a próxima semana, avançamos até a página 73, se você está lendo a edição da Penguin-Companhia (essa da foto), ou até o fim do quarto capítulo, se você está acompanhando por outras edições.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Logo no prefácio, ao mesmo tempo em que faz uma espécie de manifesto em defesa da liberdade de expressão, Wilde já nos prepara para aquela que parece ser uma das grandes discussões do romance: o papel da arte.

Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo.

Aqueles que vão além da superfície assumem um risco ao fazê-lo.

Aqueles que leem o símbolo assumem um risco ao fazê-lo.

É o espectador, e não a vida, que a arte verdadeiramente espelha.

A primeira cena de O Retrato de Dorian Gray mostra um artista, Basil Hallward, trabalhando em um retrato de uma figura exuberante, sobre quem, a princípio, ele não quer revelar muitos detalhes, mesmo diante da insistência do amigo, o Lord Henry Wotton.

Apesar de saber que esse retrato é um dos seus melhores trabalhos, Hallward reluta em exibi-lo ao grande público, por receio de que a pintura revele seus segredos. Ele diz ao amigo que, embora o quadro seja o retrato de alguém, na verdade ele diz muito mais sobre o pintor, já que havia tanto sentimento naquelas pinceladas.

Aos poucos, Hallward confessa a Lord Henry a admiração, um tanto exagerada, quase hipnótica, que sente por Dorian Gray, o modelo daquele retrato. Ele conta como se conheceram e como, a princípio, ele tentou fugir desse encontro por já pressentir o poder de Gray sobre ele. Dono de uma beleza estonteante, o jovem parecia ter Basil em suas mãos:

Virei-me e vi Dorian Gray pela primeira vez. Quando nossos olhos se encontraram, senti que empalidecia. Fui tomado por um sentimento de terror. Sabia que estava diante de alguém cuja personalidade era tão fascinante que, caso eu permitisse, absorveria todo o meu ser, toda a minha alma, e até a minha arte. Eu não queria nenhuma influência externa sobre a minha vida.

A influência, aliás, é um tema que rende ótimas passagens nessa primeira parte do livro. Os diálogos entre os três personagens – Hallward, Gray e Lord Henry – deixam clara uma certa submissão, decorrente de uma atração incontrolável de Hallward em relação a Gray e de Gray em relação a Lord Henry. Impossível ler este trecho, por exemplo, sem refletir sobre nossa época, em que “influencer” (influenciador), mais do que um adjetivo, é uma profissão:

“Não existe nada semelhante a uma boa influência, senhor Gray. Toda influência é imoral – imoral do ponto de vista científico.”

“Por quê?”

“Porque influenciar alguém é lhe entregar a própria alma. A pessoa não pensa seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. Suas virtudes não são as verdadeiras. Seus pecados, se é que existem pecados, são de empréstimo. Ela se torna o eco da música de outro, desempenha um papel que não foi escrito para ela.”

Antes de partirmos para a entrada efetiva de Gray na narrativa, vale ressaltar que a leitura da conversa de Lord Henry com Hallward flui muito bem, porque ela é composta tanto por fatos concretos que dão forma e ritmo à narrativa quanto de reflexões acerca de temas abstratos como beleza, intelecto, amizade e influência. Enquanto esperamos avidamente pelo desenrolar da história – o clímax do primeiro encontro entre Gray e Hallward e entre Gray e Lord Henry – somos entretidos com a conversa bastante filosófica dos dois amigos sobre a relação, quase nunca harmônica, na visão deles, entre a efemeridade da beleza e perenidade do intelecto:

É algo triste de se pensar, mas não há dúvida de que o Gênio dura mais que a Beleza. Isso responde pelo fato de fazermos tantos esforços para nos educarmos tanto quanto possível. Na luta selvagem pela existência, queremos ter algo duradouro, e assim preenchemos as nossas mentes bobagens e fatos, na esperança estúpida de preservar o nosso lugar.

Quando Gray chega à casa do pintor, vemos uma primeira troca de galanteios entre o personagem que dá título ao livro e Lord Henry, mas logo a conversa volta a enveredar sobre a passagem do tempo e o ocaso da beleza, já que Lord Henry instiga Gray a pensar sobre o que será dele quando sua beleza se desvanecer.

O senhor tem apenas poucos anos para viver de verdade, com perfeição e plenitude. Quando a juventude for embora, a sua beleza irá com ela, e então o senhor descobrirá subitamente que não lhe restam triunfos, ou terá de se contentar com os triunfos medíocres que a memória do passado tornará mais amargos que as derrotas.

A conversa que mais espanta Gray, contudo, é a reflexão de Lord Henry sobre o ideal helênico – a vida vivida em plenitude, sem recusas. “Todo impulso que lutamos para asfixiar persiste na mente e nos envenena”, diz Lord Henry, para logo afirmar que é preciso esquecer as “doenças do medievalismo” para ceder às tentações, única maneira de se livrar delas.

O trecho, repleto de frases de efeito daquelas que rendem várias anotações na margem do livro, é especialmente contundente se levarmos em consideração o contexto em que a obra foi escrita. A Inglaterra vitoriana foi um período de costumes extremamente conservadores, com um forte moralismo predominante na sociedade.

Em O Retrato de Dorian Gray Wilde faz uma crítica forte a esses valores, não apenas pela exaltação da beleza, do prazer e da liberdade (principalmente de expressão), mas também pelo clima de flerte entre os três personagens em uma época em que, não custa lembrar, ser gay era considerado crime.

Gray, por exemplo, é descrito como um homem “maravilhosamente bonito”, de olhos azuis sinceros, cabelos de caracóis dourados, e esses traços estão evocados em seu retrato. Quando o personagem principal encara sua figura pintada, tem uma reação espantosa:

 

“Como é triste! Eu vou ficar velho e horrendo e medonho. Ele jamais envelhecerá além deste dia de junho… Se pudesse ser diferente! Se eu permanecesse sempre jovem e o retrato envelhecesse! Por isso – por isso – eu daria tudo! Sim, não há nada em todo o mundo que eu não daria! Daria a minha alma por isso!”

De forma hábil e bastante atrativa, Wilde costura nos dois primeiros capítulos desse clássico o dilema crucial que moverá a narrativa, entre beleza e virtude, desejos e prazer, vida privada e a vida pública e, principalmente, sobre o que se esconde sob a máscara das aparências. De fato, mais atual que nunca! Estamos adorando a leitura desse clássico!

Você também? Então nos conte o que mais te chamou atenção nestes primeiros capítulos.

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4 Comentários

  1. Tudo já foi dito, estudado e escrito! E nossa geração se acha o máximo! Menos conteúdo de internet e mais clássicos!

  2. Sigo na minha leitura atrasada, mas estou acompanhando os posts como posso hehe
    Confesso que a quantidade de frases de efeito me incomoda um pouco porque algumas são clichês pra nós hoje, mas penso no impacto que elas provavelmente causaram à época do lançamento. Também acho o estilo de narrativa de Oscar Wilde bem próprio, se comparado com outros escritores do período vitoriano, apesar da carga filosófica ele parece ter uma preocupação em ser acessível, e olha que estou lendo numa tradução mais antiga, mas cotejei alguns trechos com o texto original.
    Ah, uma dica maravilhosa: coloquei pra tocar Cenas da Floresta (de Schummann) pra tocar enquanto lia, porque é mencionado no início do cap. II, e deu um climinha hahahah recomendo!
    Espero que essa semana eu alcance o cronograma. 😉

    • Amamos a dica musical!

      E, sim, o livro é bem carregado de frases de efeito, mas as reflexões filosóficas que as antecedem ou as sucedem salvam o texto da superficialidade. E como você bem observou, talvez elas tenham se tornado clichê com o tempo, afinal os clássicos nem sempre foram clássicos!

      Também estamos gostando do estilo de Wilde. Uma narrativa perfeita para saborear aos pouquinhos e em conjunto. Bons personagens, bom enredo e boas reflexões!

      Obrigada pelo comentário!

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