A democracia brasileira está em crise. A cinco meses das eleições presidenciais de 2018, a lista de candidatos é tão longa quanto assustadora, e nenhum dos nomes parece realmente viável. É possível que 2019 seja tão caótico quanto foi 2015, com perdedores contestando o resultado e um Congresso acuado pelas denúncias da Lava-Jato. Ao mesmo tempo, apesar da crise econômica que fez mais de 12 milhões de desempregados e colocou milhões em situação de pobreza extrema, a sociedade parece viver um grande período de apatia.

Essa falta de posicionamento para além das redes sociais, onde se concentra a indignação do brasileiro, é assustadora, mas talvez não seja uma “jabuticaba”, como gostamos de chamar os problemas exclusivamente brasileiros. Na edição de abril, a revista piauí trouxe um especial sobre o momento político mundial, em que a estima da democracia no mundo está em declínio, sem que ninguém saiba exatamente qual será o sistema político que pode vir a suprir esse vácuo.

O sociólogo Celso Rocha de Barros, em seu excelente ensaio sobre O Brasil e a Recessão Democrática, mostra que a crise brasileira até pode ser coisa nossa, com um desarranjo econômica avassalador produzida internamente e um quadro político que soma um ex-presidente preso, uma presidente alvo de impeachment, três  ex-governadores do Rio de Janeiro atrás das grades e conversas inescrupulosas entre o atual mandatário do país e um dos mais conhecidos empresários brasileiros – hoje também em uma cadeia.

Ao mesmo tempo, no mundo todo o número de democracias vem caindo ao longo da última década, com deterioração da qualidade das restantes. A partir de dois livros de títulos parecidos – How Democracies Die (Como as Democracias Morrem) e How Democracy Ends (Como a Democracia Termina), Barros analisa a crise democrática brasileira e o contexto internacional para argumentar que, surpreendentemente, a crise brasileira foi tão intensa que pode ter gerado as forças necessárias para que o sistema se reorganize e seja preservado.

Se a tese se provará correta ou não, saberemos apenas depois de outubro. Mas além da brilhante análise de um noticiário político que parece inexplicável, Barros mostra como a indignação popular (e seletiva) das redes sociais foi de certa forma marionete de velhos interesses políticos, que conseguiram se preservar mesmo em um cenário de elevada incerteza.

Essa indignação manifestada via redes sociais também parece vir acompanhada de um grande sentimento de “não fui eu”, como aponta João Moreira Salles em outro dos ensaios sobre o tema na revista. As pichações anônimas com essa frase se espalharam nos últimos anos pelo Rio de Janeiro e parecem esfregar na nossa cara que agimos como se os acontecimentos em Brasília estivessem totalmente apartados de nossa realidade cotidiana. Não fomos nós os responsáveis pela crise, e portanto podemos seguir com a rotina de casa para o trabalho, para a academia, para a cerveja do fim de semana como se nada mais houvesse. Ou, como escreve o autor:

A sensação difusa de que ela exprime um éthos, de que essas três palavras falam de nós, é uma confirmação de que, dado o alheamento geral, o melhor mesmo é jogar a toalha e ir cuidar da própria vida.

Foi essa a construção  que me prendeu em A Noite da Espera (leia a resenha aqui), primeiro volume da trilogia O Lugar Mais Sombrio, de Milton Hatoum. Apesar das críticas aos personagens pouco complexos e a falta de um enredo mais empolgante, eu particularmente gostei do livro por enxergar grandes paralelos entre o momento ali descrito e o  atual. Martim, o personagem principal do livro, narra, por meio de fragmentos de seus diários e de bilhetes e anotações, sua mudança para Brasília em meio ao golpe militar. Enquanto o cenário político se torna cada vez mais sombrio, com aumento da violência e da tensão, o jovem se concentra em seus problemas pessoais, na distância da mãe e no desapego da namorada. Ali, o ocaso total da democracia pouco lhe importa, e é quase impossível não enxergar neste enredo um reflexo dos nossos tempos.

Afinal, não fui eu. Não fomos nós. Quem foi, então?

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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