O jornalista austríaco André Gorz conheceu Dorine em 1947, em Lausanne, na Suíça, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Como ele mesmo reconhece, o romance entre os dois era pouco provável. O que Dorine, uma bela e resoluta jovem inglesa, poderia querer com ele, um austrian jew, como o autor se define? Carta a D. (Companhia das Letras) que Gorz escreveu para a esposa depois de quase cinquenta anos juntos, busca retomar os alicerces dessa paixão, em talvez uma das mais memoráveis declarações de amor da literatura.

Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.

Mesmo sabendo que o amor é filosoficamente difícil de ser definido, Gorz tenta evocar os marcos de uma relação duradoura, buscando de certa forma explicar o inexplicável: porque nos apaixonamos por determinada pessoa, e não por outra, e porque continuamos a amá-la a vida inteira.

Um momento fundamental na vida do casal foi a decisão sobre o casamento. Para Gorz, uma burocracia que codificava juridicamente uma relação de amor. Para Dorine, o casamento tinha outro sentido:

A construção do casal é um projeto comum aos dois, e vocês nunca terminarão de confirmá-lo, de adaptá-lo e de reorientá-lo em função das situações que forem mudando.Nós seremos o que fizermos juntos.

Mesmo quando discordavam, o relacionamento se fortalecia. De fato, não há compromisso mais forte do que ser o que se faz junto. A extensão do laço estabelecido entre os dois ia além da paixão. Havia uma comunhão intelectual e espiritual que faz dessa pequena homenagem à Dorine uma declaração de amor inspiradora, para quem está ou não apaixonado.

Gorz não deixa de fazer uma autocrítica por, certas vezes, não ter demonstrado adequadamente a importância de Dorine em sua vida. Em Le Traites, seu primeiro livro publicado, ele se arrepende de ter retratado a esposa como alguém que não sobreviveria sozinha na Suíça, sem amigos, quando na verdade Dorine parece ter sempre sido o esteio na vida do casal.

O que Gorz reconhece como culpa, contudo, expõe muito menos o casal do que outras declarações do tipo, quase sempre repletas de casos extraconjugais, como no caso de Gay Talese, por exemplo, que chegou a anunciar que escreveria um livro sobre sua vida com a esposa, depois de ter exposto suas traições em A Mulher do Próximo.

O grande alicerce da vida de Gorz e de Dorine é sua capacidade de construir uma vida comum, a despeito de eventuais dificuldades. Se em determinado momento Gorz afirma que  não esteve à altura de sua resolução, de viver o presente, atento à riqueza que era a vida em comum dos dois, há sem dúvida um excesso de pessimismo. Em suas palavras, transborda um senso de companheirismo, dedicação e reconhecimento cada vez mais raros de ser explicitados, em tempo em que as declarações de amor são relegadas a simples mensagens ou, quando muito, e-mails.

A vida em comum dos dois foi construída apesar das dificuldades. Nos anos de penúria do pós-guerra, Dorine contribuiu para sustentar a casa com pequenos trabalhos e pouco reclamava das longas horas que o marido passava escrevendo.

Quando ela desenvolveu uma aracnoidite por causa de injeções de lipiodol após uma operação de hernia, que lhe causava terríveis dores de cabeça, os dois abraçaram um estilo de vida mais ligado à natureza, mais distante dos centros urbanos. Gorz a acompanhou nos períodos de convalescença. Decidiram construir uma casa para viver no campo, onde ficaram por mais de 20 anos, tomando a dianteira como pensadores ecológicos.

Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.

A decisão tomada pelos dois, de cometer suicídio em 24 de setembro de 2007, foi o derradeiro ato desse grande amor.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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