Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 172. Vamos passar da metade do livro! Quem aí já está sentindo a tristeza da despedida dos personagens queridos? :’(

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Tia Ifeoma chegou à história para felicidade geral dos leitores e leitoras feministas! Já estávamos ficando agoniadas com a submissão de Mama e Kambili à figura autoritária e machista de Papa.

Ela é viúva e se desdobra para sustentar os três filhos com seu salário, nem sempre pago em dia, de professora universitária. Tem muito afeto e cuidado com o pai, o avô “pagão” de Kambili, e uma relação conturbada com o irmão, o Papa. Ela questiona a intolerância religiosa de Eugene e critica o uso que ele faz do dinheiro, para comprar as crenças e a aprovação das pessoas.

Kambili vê a tia com olhos de curiosidade e admiração ao mesmo tempo. Os cumprimentos efusivos, a risada alta, os comentários ousados: tudo isso é tão distante do comportamento de Mama, a referência feminina mais próxima da menina.

A descrição da chegada de tia Ifeoma é barulhenta, expansiva e forte como a personagem. De cara, já percebemos que novos ares chegam à história. Seu primeiro gesto é um apertão no seio de Kambili, seguido da expressão “como estão crescendo depressa”. A irreverência deixa a sobrinha, acostumada a pensar e agir de acordo com um código estrito de regras, totalmente desconcertada.

Chimamanda sabe trabalhar muito bem os sentidos e as metáforas – as cores do hibisco, os cheiros marcantes da casa do avô, a risada da tia Ifeoma, o bolinho de fufu que não consegue descer na garganta de Kambili. Parece que os personagens e os ambientes estão aqui, pertinho da gente:

Tia Ifeoma apareceu no dia seguinte. (…) Sua risada flutuou até a sala de estar do segundo andar onde eu estava lendo. Eu não a ouvia fazia dois anos, mas teria reconhecido aquela risada gostosa em qualquer lugar.

Essa risada, aliás, aparece novamente, na leitura, em um sonho de Kambili:

Naquela noite, sonhei que estava rindo, que a risada não soava como minha, embora eu não soubesse bem qual era o som da minha risada. Era uma risada alta, profunda e entusiasmada, como a de tia Ifeoma.  

Para quem acredita nos poderes proféticos dos sonhos, essa passagem dá esperança de que uma Kambili mais solta, que se permite rir e se expressar livremente como tia Ifeoma, vem aí. É possível que os dois capítulos que acabamos de ler deem alguns sinais desse poder de encorajamento de Ifeoma. Mama, por exemplo, autoriza que Kambili, com cólicas, coma algo antes do desjejum da Eucaristia para não passar mal com o remédio. É uma proibição expressa de Papa, que acaba punindo a todos por isso, mas um sinal de que há, em Mama, algum poder de contestação, ainda que muito sutil.

Junto com a tia, chegam também os primos. Com eles, Kambili tem a mesma relação, que é um misto de curiosidade e espanto. Especialmente com a prima, Amaka, que tem a mesma idade que ela. Esse, inclusive, é um fator surpresa para o leitor. Até então, não sabíamos quantos anos tinha Kambili. Julgávamos estar ouvindo uma criança, de menos de dez anos, extremamente disciplinada e temerosa de seu pai. Nada disso! Kambili tem 15 anos, assim como sua prima.

Por que nos enganamos tanto? Porque julgamos o comportamento de Kambili pela perspectiva da nossa cultura, na qual um grau de submissão como o que ela tem em relação ao pai só é aceitável em uma criança. Já sua prima, criada sob o pensamento e a vida mais livre de tia Ifeoma, não nos espanta. É mesmo uma adolescente de 15 anos – questionadora, ousada e falante. Ela e a mãe não se preocupam em agradar Papa, o próprio avô (que embora tenha muitas divergências com Papa, parece concordar sobre a inferioridade da mulher na sociedade) ou quem quer que seja.

Foi também com uma tia que Chimamanda aprendeu muito sobre o que queria ser e, ao mesmo tempo, de quais posturas gostaria de se afastar. À semelhança de Ifeoma, tia Chinwe, quando chegava em algum lugar, o “transformava em um espaço cativante, a salvo de todo o perigo”, como escreve a autora no artigo Crônica de um grande erro, publicado no El País. À medida que crescia, porém, Chimamanda passou a admirar menos o que antes via como virtudes da tia, pois começou a enxergar no lugar a obediência a ritos que apenas diminuíam o papel da mulher na sociedade. Mais tarde, afirma, perceberia:

que o problema não era a tia Chinwe, mas nossa sociedade. Não eram as mulheres, mas as forças que as obrigavam a se encolher. A tia Chinwe me ensinou que a riqueza não protegia a mulher contra essas forças. Nem a educação ou a beleza. Ela me ajudou na minha decisão de viver minha condição de mulher com toda sua glória e complexidade.

A igualdade de gêneros e o posicionamento da mulher na sociedade são temas frequentes nas obras de Chimamanda. A autora é uma defensora apaixonada da urgência dessa reflexão. Homens e mulheres precisam repensar padrões e derrubar tradições que não tenham como premissa a igualdade. Isso é libertador para ambos, como ela explica neste trecho do livro – resultado de uma palestra sua no TED – intitulado Sejamos todos feministas:

A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente.

Se tem algo que Chimamanda não cansa de nos mostrar, em abordagens políticas, religiosas ou sociais, é que todos temos o direito de ter a risada alta, profunda e entusiasmada de tia Ifeoma.

ps.: quem quiser assistir ao discurso completo de Chimamanda no TED, clique neste link: Sejamos todos feministas. Vale muito a pena!

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