[Resenha] Seminário dos Ratos

Você nunca termina um conto da Lygia Fagundes Telles e já sabe de cara o que pensar. Ou pelo menos não os reunidos em Seminário dos Ratos. Como escreveu o crítico Antonio Dimas no posfácio de Antes do Baile Verde, Lygia nos deixa sempre um filetinho de sangue escorrendo.

Nada muito profundo, mas o suficiente para incomodar, na hora e por extenso tempo, cravadas na memória. O suficiente para se lembrar de que, nas próximas vezes, você não deve se aproximar tão desguarnecido e confiante, porque o bote pode vir, quanto menos se espera, não se sabe de onde”.

Eu não me aproximei desguarnecida, embora esse tenha sido o primeiro livro da Lygia que li. Sei que isso não deveria ser dito assim, abertamente, em público, mas já havia ensaiado ler As Meninas inúmeras vezes e nunca passava da cena em que elas estão jogando conversa fora no quarto, logo no começo (já falei desse problema aqui).

Com os contos (e uns bons anos de distância da tentativa fracassada anteriormente) foi mais fácil, mas não menos impactante. Não é à toa que Lygia foi indicada pela União Brasileira de Escritores (UBE) para o prêmio Nobel de literatura deste ano. Em Seminários dos Ratos, de 1977, a autora, que fez 93 anos nesta semana, adota múltiplos pontos de vista, alterna entre fluxo de consciência e diálogo, entre passado e presente, tudo isso sem nunca perder o tom.

“No Inferno deve ter um círculo a mais, o dos perguntadores fazendo suas perguntinhas, seu nome? sua idade? massagem ou ducha? fogueira ou forca? – sem parar. Sem parar.”

A frase, no meio de um dos contos de que mais gostei, A Sauna, em que o narrador vai e vem entre as brumas da sala de banho em que está e uma conversa com sua ex-mulher sobre uma antiga namorada, te faz parar e respirar. Pode ser por causa da cadência, do crescendo em que vêm as perguntas e frase seca a seguir, mas aqui está um exemplo típico do bote de Lygia.

Às vezes, ele vem em dois tempos, como no conto de abertura, As Formigas, também um dos meus preferidos. Duas estudantes chegam a uma pensão com cara de mal assombrada.

“Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada”.

As duas amigas são levadas para o quarto por uma senhora com peruca mais negra que a “asa de graúna”, vestindo um pijama de seda japonesa desbotado e as unhas aduncas com uma crosta de esmalte vermelho-escuro. Com uma ambientação assim, já dá para sentir o frio na espinha, até que a senhora conta que o inquilino anterior deixou para trás um esqueleto de anão dentro de uma caixinha.

A estudante de medicina se empolga, pela raridade do achado, “sem nenhum ossinho faltando”. Fica de trazer ligaduras para montá-lo. O problema é que logo surgem as formigas do título, que só aparecem ao anoitecer, formam uma trilha fixa, da porta até o caixotinho, e começam a montá-lo, sorrateiramente, cada vez mais rápido. As duas debandam, é claro, mas não sem antes dar uma última espiada no lugar.

“Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra”.

É quase realismo fantástico, mas a verdade é que Lygia nunca tira os pés do chão. É tudo sempre muito sutil, figurado, o suficiente para que não haja distanciamento entre o que está escrito e a fronteira do que é possível.

Como no conto A Presença, em que um jovem de vinte e poucos anos chega a um hotel de velhos e tenta se registrar. O balconista o alerta que aquela não é decisão sábia, não só porque pode se entediar com os hábitos e com as comidas sem sal, mas porque ali viviam “seres obstinados” pelo direito de morrer em paz, que não queriam ser lembrados de que havia outra realidade possível.

“Com sua simples presença, iria revolver tudo: a revolução da memória. E passara o tempo das revoluções, ninguém queria renovar, mas conservar”.

O jovem não se abala, e decide ficar, aproveitando a piscina, o sol. “ Ao se deitar, já não se sentia bem”, termina Lygia, sem precisar dizer mais nada. Os detalhes, as descrições minuciosas, a cadência com que aborda os assuntos – nunca de cara, mas aos pedacinhos, como se desvelando um novelo que nunca sabemos onde vai dar – fazem da leitura dos contos deste livro um prazer doído, como talvez gostasse de dizer Lygia.

Dá vontade de descrever conto por conto, mas obviamente resumos não têm nem de longe a mesma graça que ler os livros dela. Ficamos na torcida pelo Nobel!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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3 Comentários

  1. Tatá, amei a resenha! Fiquei com muita vontade de ler. Conto é um gênero fantástico e tem que dominar muito a escrita pra não perder a mão. Lygia parece ser mestre no assunto!

  2. Comecei a comprar os livros da Lygia Fagundes Telles por causa das capas da coleção da Companhia das Letras (feitas pela artista Beatriz Milhazes). Tenho vários livros da coleção, já li alguns romances, entre eles As Meninas e Ciranda de Pedra. Gostei muito, mas o meu preferido é Verão no Aquário. Muito bom, vale a pena a leitura. Agora me animei para ler Seminário dos ratos.

    • Tainara Machado

      26 de abril de 2016 at 22:46

      Oi Gabi! Leia sim, vale a pena! Gostei muito da Lygia, e as capas lindas da coleção da Companhia são um incentivo a mais pela leitura! Vou procurar por Verão no Aquário!

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