[Hibisco Roxo] Semana #7

Agora é reta final! Na próxima semana, vamos até o fim do livro. Dá dor no coração nos despedir de Hibisco Roxo, mas precisamos confessar: está quase impossível segurar o ritmo nessas páginas finais!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O descontrole de Papa marcou essa última leitura. E, desta vez, a vítima não foi somente Mama. Kambili também sentiu a violência e a intolerância do pai. Depois de flagrar ela e o irmão admirando o retrato do avô, Papa dá uma surra que leva a menina ao hospital em estado grave.

Sempre depois de cometer suas atrocidades, Eugene tem lampejos de preocupação:

O rosto de Papa estava próximo do meu. Tão perto que seu nariz quase tocou o meu, mas mesmo assim vi que seus olhos estavam mansos, que ele falava e chorava ao mesmo tempo.

– Minha filha preciosa. Nada vai acontecer com você. Minha filha preciosa.

Se não conhecêssemos tão bem sua inflexibilidade, até acharíamos que ele se arrepende das maldades que pratica. Mas arrependimento só está no vocabulário de Papa como lamento, não como força que poderia ser capaz de mudar sua postura. Ele sempre encontra uma explicação para si mesmo para justificar o que fez. Quando pensamos nas atitudes dele, nos vem à cabeça uma frase que está no livro A Elegância do Ouriço, da escritora Muriel Barbery:

A faculdade que temos de manipular a nós mesmos para que o pedestal de nossas crenças não vacile é um fenômeno fascinante.

Eugene está constantemente manipulando situações, pessoas e até a si mesmo para legitimar seu comportamento. Ele repete tantas vezes suas crenças e verdades absolutas que sua família e grande parte da sociedade preferem ver apenas um homem generoso que, esporadicamente, tem reações explosivas pelo estresse que está passando ou por seu comprometimento com a religião. Mama é um exemplo claro dessa postura passiva. Kambili, até então compreensiva, passa enfim a enxergar essa posição submissa. No hospital, quando acorda e vê a mãe inchada de tanto chorar, pensa:

Quis poder me levantar e abraçá-la, mas também quis empurrá-la para longe, com tanta força que sua cadeira cairia para trás.

Mama, porém, não consegue sair dessa relação absurda de violência. Depois de sofrer mais uma surra que a levou a mais um aborto, ela segue desorientada em direção à casa de tia Ifeoma, buscando abrigo. Mas basta uma ligação de Papa para que ela volte às suas desculpas de sempre:

– Eugene não anda bem – disse ela. – Tem tido enxaquecas e febre. Ele carrega mais sobre os ombros do que qualquer homem deveria carregar. Você sabe o que a morte de Ade fez com ele? É demais para uma só pessoa.

A morte de Ade Coker foi mais um acontecimento que marcou essa última leitura. Um pacote com explosivos chegou à casa do editor do Standard para mostrar que os homens que estão no poder não estão dispostos a tolerar um jornal de oposição. Papa, como sempre, se lamenta por não ter garantido a segurança do funcionário e remedia a situação da família do editor com pilhas de dinheiro, como resolve quase todos os problemas que o cercam.

Não é apenas em Enugu que percebemos um país sob uma ditadura pós-golpe. Em Nsukka, os estudantes da universidade começam a se queixar dos abusos de autoridade do governo e até tia Ifeoma recebe a “visita” de “uma unidade especial de segurança de Port Harcourt”, sob a suspeita de estar colaborando com os manifestantes.

Diante dessa ameaça, outra novidade surge na narrativa. Depois da surra, tia Ifeoma consegue trazer Kambili e Jaja de volta à Nsukka, mas lá eles descobrem que o destino continua incerto. Há, agora, a possibilidade de tia Ifeoma emigrar para os Estados Unidos. Dentro da própria família não há um consenso: Amaka considera a ideia um ato de covardia, de fuga; já Obiora acha que é o melhor a fazer, porque não há mais a perspectiva de um país pelo qual zelar. Neste diálogo da tia com uma amiga, esse paradoxo fica evidente:

– Não estou pensando em mim, Chiaku – disse tia Ifeoma, hesitante. – Quem vai dar aulas para Amaka e Obiora na faculdade?  

– Os que estudaram vão embora, aqueles que têm potencial para consertar o que está errado. Eles deixam os fracos para trás. Os tiranos continuam reinando porque os fracos não conseguem resistir. Você não vê que é um círculo vicioso? Quem vai quebrar esse círculo?

Nesse trecho sutil, Chimamanda propõe uma reflexão muito interessante sobre o papel da educação e do pensamento crítico na transformação de uma realidade desfavorável. O escritor David Foster Wallace, do qual já falamos algumas vezes aqui no blog, abordou de maneira muito lúcida, em um discurso de paraninfo na Kenyon College, o mantra “ensinar a pensar”, que comumente se atribui como a missão mais nobre dos educadores:

Estou querendo dizer que o verdadeiro mantra do “ensinar a pensar” nas ciências humanas tem a ver com isso: ser um pouco menos arrogante, ter um pouco mais de “consciência crítica” a respeito de mim mesmo e de minhas certezas… pois no fim das contas uma porcentagem enorme das coisas a respeito das quais estou inclinado a automaticamente ter certeza acaba se revelando ilusória ou completamente equivocada.

Estamos caminhando para a reta final de Hibisco Roxo e, cada vez mais, fica claro para nós que este é um romance sobre liberdade. No livro, tia Ifeoma e seus hibiscos roxos são o símbolo máximo desse pensamento livre e do “ensinar a pensar”. Kambili se dá conta disso em uma das cenas mais tocantes que tivemos até agora:

O padre Amadi riu e disse que acreditava que os meninos podiam saltar mais alto do que pensavam.  E que eles haviam acabado de provar que ele estava certo.

Naquele instante, percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto graças à forma como falava com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo, acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e com Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos; saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir.

Chimamanda nos leva muito além da liberdade física. Ela nos provoca sobre a liberdade de pensamento, nos mostrando que esse é o único remédio para vencer a arrogância alheia, mas principalmente a nossa própria, que fica ali se segurando no “pedestal de nossas crenças”, seja por comodismo, intolerância ou medo.

Ao menos, tivemos certeza que Kambili aprendeu o valor da liberdade, nem que seja de um caramujo. Ao assistir à segunda tentativa de fuga de um dos tantos bichinhos na cesta da mulher que está trançando seus cabelos, no mercado, ela reflete:

Eu me perguntei se era o mesmo caramujo de antes: rastejando para fora, sendo atirado de volta para dentro e então rastejando de novo para fora. Determinado. Tive vontade de comprar o cesto todo só para soltar aquele caramujo.

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5 Comentários

  1. Lilian Cantafaro

    23 de abril de 2016 at 15:17

    Depois de ter lido ‘Sejamos Todos Feministas’, ‘Americanah’ e quase no fim de ‘Hibisco Roxo’ (sim, me esforcei ao maximo pra não avançar na leitura), constatamos que não é facil ser Chimamanda, Ifemelu ou Tia Ifeoma numa sociedade machista como a Nigeriana.
    Porém mesmo que tenhamos a impressão de que pessoas que poderiam fazer a diferença (como Chimamanda) deixem seus paises, são também elas – mesmo não sendo a maioria – que quando regressam, ajudam seus paises a trilhar um caminho melhor em direção à liberdade.

    • Mariane Domingos

      30 de abril de 2016 at 16:36

      Lilian, essa questão de regressar ao país com o objetivo de contribuir ainda mais é mesmo um grande diferencial. Chimamanda, por exemplo, tem algumas iniciativas muito interessantes voltadas à literatura e à educação na Nigéria, sem falar dos debates acerca do empoderamento feminino. Penso que escritores têm um papel muito importante na reflexão coletiva sobre os rumos que a humanidade toma. E quando esse esforço ultrapassa as páginas dos livros, é mais admirável ainda.

  2. Confesso que cheguei atrasada para o acompanhamento do Clube do Livro (li todos os posts agora), mas também não me controlei e já terminei. :O
    Mas, para não ter spoilers, vou me limitar a dizer que AMEI! Já tinha lido Americanah, por indicação da Tata, mas a trama do Hibisco Roxo me conquistou. É tenso e delicado, tudo ao mesmo tempo.
    E os posts de vocês são simplesmente incríveis, meninas.
    Vocês escrevem com sutileza e analisam os trechos de maneira profunda, mas muito direta. Parabéns!!!
    Amo o blog!

    beijos!

    • Oi Gabi! Muito obrigada! Que bom que gostou! 🙂 Você tem razão. Em Americanah, ela escancara todas as questões de uma vez. Já em Hibisco, tudo que está escrito sobre liberdade, religião, cultura aparece quase sempre nas entrelinhas. É um livro bem bonito!
      E em breve vamos anunciar o título do próximo mês, com direito a sorteio! Não perca!

    • Mariane Domingos

      30 de abril de 2016 at 17:06

      Gabi, que bom que gostou do livro e da experiência do Clube! E muito obrigada pelos elogios ao blog! Esse incentivo nos anima bastante a continuar compartilhando nossas leituras.
      Concordo plenamente com sua descrição de Hibisco Roxo: “é tenso e delicado, tudo ao mesmo tempo”. É exatamente isso! Chimamanda consegue impactar sem precisar ter ação ou drama em todas as páginas. Ela nos mostra que as grandes lições não vêm apenas de grandes acontecimentos. Pelo contrário: em nossas rotinas e conversas aparentemente triviais, já podemos aprender um bocado.
      Estamos esperando você em nosso próximo Clube! Vamos da Nigéria à Ucrânia. A leitura de Vozes de Tchernóbil também promete! ; )

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