Jonathan Franzen foi reverenciado na capa da revista norte-americana Time como o grande romancista americano por Liberdade, mas foi com As Correções que se destacou na cena literária mundial. Este é um livro por vezes cômico, mas ao mesmo tempo delicado e repleto de questões morais sobre uma das doenças mais assustadoras e onipresentes do século XXI: o mal de Alzheimer. É também um dos meus livros preferidos.

Como quase toda ficção de Franzen, As Correções traz consigo forte carga autobiográfica. O livro retrata a saga de uma familia americana comum , habitante dos subúrbios da pequena cidade de St. Jude (os pais de Franzen são de Saint Louis). As crianças, hoje adultos, foram embora e estão espalhadas pelos Estados Unidos. Deixaram para trás Alfred, o pai, que está aposentado há alguns anos da empresa em que trabalhou quase a vida inteira, e precisa conseguir conviver com Enid, a esposa de gênio forte, que conta até os centavos e nunca deixa os comentários desagradáveis de lado. As tardes Em St. Jude são carregadas.

Por toda a casa ressoava o toque de uma campainha de alarme que só Alfred e Enid conseguiam ouvir claramente. Era o alarme da ansiedade.

Enid se irrita porque precisa checar, de quase cinco em cinco minutos, o que Alfred está fazendo. Se antes ele conseguia pintar o sofá de vime em algumas horas, agora o trabalho poderia demorar mais de um mês – e mesmo assim só as pernas do móvel estavam prontas. Alfred argumenta que é tão delicado lixar a palha quando descascar um morango, ou que o pincel tinha secado, por isso o trabalho demora tanto. As evidências de que algo está errado se amontoam, mas todos evitam olhar. 

A capacidade de Alfred de realizar tarefas diárias básicas diminuiu lentamente, mas Enid está convicta de que lhe falta apenas atitude. “Ao menos se ele se esforçasse mais”, pensa. Os filhos, afastados, também relutam. Acreditam que  talvez  Enid exagere nos relatos, já que reclamar foi sua tarefa número um a vida inteira. Talvez a situação não seja tão ruim. Talvez os sintomas do pais estejam associadas à depressão, e ele precise mudar de ares, ter algum incentivo para viver.

Para tentar melhorar a situação, Alfred e Enid decidem viajar e fazem um cruzeiro. O pouco domínio que Alfred tinha de sua situação, ao qual ele tenta se agarrar com todas as forças criando padrões e rotinas, se esvai com a mudança de ambiente. No navio, até o banheiro é um desafio. A capacidade de Franzen de recriar o estado de confusão mental de Alfred é angustiante: ele navega pelos ambientes do navio sem reconhecer itens básicos de sinalização, encontra antigos desafetos e sabe que eles não poderiam estar naquele lugar, se perde, se desorienta e tenta lutar para manter o foco.

O problema era que seu sistema nervoso não servia mais como um indicador de confiança para avaliar se precisava ou não ir ao banheiro. À noite, a resposta era usar proteção. E de dia a solução era visitar o banheiro de hora em hora, e jamais deixar de carregar a velha capa de chuva preta para o caso de precisar encobrir um acidente. A capa tinha ainda a virtude adicional de ofender a sensibilidade romântica de Enid, e aquelas escalas no banheiro de hora em hora, a virtude adicional de estruturar sua vida. Atualmente, sua única ambição era manter a coesão das coisas — impedir que o oceano dos terrores noturnos rompesse a última barreira.

O drama do banheiro se transforma numa tragicomédia, na qual Alfred é perseguido por um cagalhão e em determinado momento não vê mais saída a não ser se debruçar na balaustrada do navio. E cair na água.

Mesmo depois desse episódio, os filhos ainda tentam encontrar alternativas. Acreditam que caso os dois passem uma temporada na casa de Denise, a filha do meio, Alfred possa melhorar. Envolvidos em dramas próprios, cada um com sua vida, os três só conseguem entender a gravidade da situação quando voltam para casa em um Natal. Gary, o filho mais velho, encontra o pai seminu na banheira, tendo alucinações sobre fraldas vazias que podem atacá-lo a qualquer momento. Ao tentar auxiliá-lo com exercícios, Denise vê que o pai não sabe mais nem qual é o seu lado esquerdo e que aquela rotina é um martírio em seu estado de confusão mental.

Enquanto ela subia correndo para vestir o casaco e as luvas, sentia mais pena da mãe, porque por mais que Enid tivesse se queixado amargamente com ela, jamais tinha entrado em sua cabeça que a vida em Saint Jude se tivesse transformado em tamanho pesadelo; e como ela podia se permitir respirar, quanto mais rir, dormir ou comer bem, quando era incapaz de imaginar o quanto era árdua a vida de outra pessoa?

O mais marcante em As Correções não é a capacidade de Franzen de articular histórias, de conciliá-las todas em um determinado ponto, ou mesmo a força da sua narrativa, mas a descrição minuciosa da doença de Alfred, do estado degenerativo em que se encontra, e de como é difícil para um família enxergar que há uma peça que não se encaixa mais naquele drama. Franzen consegue ser sutil e ao mesmo tempo certeiro ao retratar o egoísmo dos filhos, o vazio cada vez maior na vida do pai e as dúvidas morais da mãe. Franzen não é, definitivamente, um autor de famílias felizes.

Alfred passa mais algum tempo no hospital, mas tem alta com diagnóstico de mal de Parkinson, demência, depressão e neuropatia das pernas e do trato urinário. A família decide que Enid não tem mais condições de cuidar dele e o coloca em uma casa de repouso. Denise e Chip, o mais novo, o visitam com regularidade, têm paciência com suas alucinações e seu estado de alheamento quase total. Já Enid não o perdoa.

Ela tinha passado a vida inteira sentindo-se Errada, e agora tinha finalmente a oportunidade de dizer a ele o quanto ele estava Errado. (…) Precisava ir lá e dizer a Alfred que era errado babar sorvete em suas calças limpas e recém-passadas.  Que era errado ele não ter ficado feliz ou grato ou nem mesmo minimamente lúcido quando sua mulher e sua filha se deram a um trabalho enorme para levá-lo a jantar em casa no Dia de Ação de Graças. Que era errado ele dizer, depois daquele jantar, quando o devolveram à Deepmire Home, que “é melhor nunca sair daqui do que ter de voltar”. Era errado, quando ele ainda era capaz da lucidez suficiente para produzir aquela frase, ele não ficar lúcido em nenhum outro momento. Era errado ele tentar enforcar-se com os lençóis no meio da noite. Era errado ele tentar atirar-se pela janela. Era errado tentar cortar os pulsos com um garfo.

“Melhor nunca sair do que ter de voltar” foi daquelas frases que ficou ecoando na minha cabeça durante muito tempo. Até que ponto alguém naquele estado de confusão pode ter lampejos de lucidez, é a pergunta que Franzen nos faz. O quanto há de significado numa frase dessas? Será que de fato é melhor? Qual seria a alternativa?

Além de um grande romancista, Franzen é também excelente ensaísta. Neste texto publicado pela revista piaui, ele levantou algumas dessas questões e falou um pouco mais sobre como foi lidar com a doença do pai. A frase acima foi dita de verdade. Para Earl Franzen, era melhor não sair do que ter de voltar.

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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