Depois de escrever o “grande romance americano” sobre a derrocada da classe média nos Estados Unidos durante o governo de George W. Bush, o americano Jonathan Franzen parte de uma premissa mais simples em Pureza, seu livro mais recente, lançado no Brasil no ano passado pela Companhia das Letras.

A história narra a busca de uma jovem, Pip Tyler, por seu pai, sobre quem a mãe se recusa a dar informações. O enfoque mais restrito não quer dizer, contudo, que o autor tenha deixado de lado alguns traços marcantes de suas obras anteriores, como o hábito de escrever livros longos, a partir de múltiplos pontos de vista, sem linearidade de tempo. Mas depois que Liberdade foi considerado uma obra-prima e a revista Time estampou Franzen na capa como o grande romancista americano, o autor parece ter deixado certa pretensão formal de lado para escrever um livro mais tradicional.

Mais à vontade, o autor não deixa de tratar com ironia o status que ganhou como escritor nos últimos anos. Um de seus personagens, em determinado momento, busca escrever um romance que lhe garantirá um lugar no cânone norte-americano, mas avalia que, para chegar lá, precisa de mais do que conteúdo.

Houve um tempo em que bastava escrever O Som e a Fúria ou O Sol Também se Levanta, Mas agora tamanho se tornara essencial. Livro grosso, história longa.

O romancista depressivo e alcoólatra também nota o excesso de Jonathans na literatura, enquanto Franzen parece fazer piada de sim mesmo, mais uma vez:

“Há tantos Jonathans. Uma praga de Jonathans literários. Quem só lê a New York Times Book Review pode pensar que é o nome de homem mais comum nos Estados Unidos. Sinônimo de talento, importância. Ambição, vitalidade”.

Apesar do tom autodepreciativo e de fazer graça com o tamanho de seus livros,  Franzen não abandona o que chama do “duende da especificidade espúria”. Pureza é um livro longo e, por vezes, maçante. Para contar a história de Pip Tyler, que, na tentativa de descobrir a identidade de seu pai, acaba envolvida em um projeto obscuro na América Latina, o autor recorre a uma miríade de personagens e assuntos que podem se tornar bastante cansativos. Da controle da Stasi e a queda do muro de Berlim à discussão sobre o futuro do jornalismo e a produção de reportagens por entes sem fins lucrativos, passando pela ameaça nuclear, há espaço para quase tudo nas mais de 600 páginas de Pureza.  

Em As Correções e Liberdade, a multiplicidade de pontos de vista e de personagens servia a um propósito: delinear dilemas sociais do início deste século. A instabilidade familiar diante de um parente com uma doença grave; a derrocada das instituições e o fim do sonho americano de prosperidade para todos. Em Pureza, as questões que absorvem os personagens são mais individuais, e por isso as histórias e dilemas morais parecem se alongar excessivamente.

O tema mais ou menos comum parece ser outra doença do século XXI, tão onipresente quanto silenciosa: a solidão. A solidão de um tempo em que as conexões sociais são mais vulneráveis e tênues, justamente porque foram substituídas por seu simulacro online. A solidão que vem do poder, da fama, da riqueza, do status social. A solidão feminina na busca por caminhos mais autônomos, para no fim cair em velhas armadilhas. A solidão por causa da impossibilidade do amor.

Estava se lembrando da antiga tristeza e a sentia agora, a convicção de que o amor era impossível, de que por mais que houvessem enterrado o antigo conflito ele nunca iria desaparecer. O problema de uma vida livremente escolhida, de uma vida conforme o Novo Testamento, é que ela podia acabar a qualquer instante.

Isolados, os personagens se tornam mentirosos contumazes. Quase todos têm algo a esconder, e por esse mesmo motivo o quebra-cabeça que os relaciona só se encaixa na segunda metade da narrativa.

O Projeto Luz do Sol, para onde Pip vai em busca de respostas, promete um mundo em que há mais transparência. Fundado por Andreas Wolf, filho de um conselheiro importante da República Oriental alemã durante a administração soviética, o projeto procura dar transparência a informações de domínio privado, por meio de vazamentos semelhantes aos promovidos por Julian Assange e seu Wikileaks, mas com maior abrangência.

Não é possível deixar de notar um certo desprezo de Franzen por esse tipo de iniciativa. Wolf é um personagem quase amoral, afogado em seu ego, apesar das tentativas de se autoafirmar como um benfeitor público. A missão de sua iniciativa em pregar a transparência contrasta com a opacidade da operação, ndo financiamento e da sustentação do seu projeto. Parece um traço comum da literatura contemporânea esse desconforto com a hipocrisia das iniciativas mais ambiciosas para dirimir os grandes problemas da humanidade.

Pureza também mostra que a internet alcançou – e dominou – a literatura. Se antes os livros ainda pareciam um lugar em que havia certo isolamento da vida online, com uma ou outra referência espaçada, a rotina virtual que colocamos em prática diariamente tem sido ostensivamente transposta para as páginas dos livros. Em Pureza, boa parte das conversas relevantes acontece por e-mail ou outro tipo de troca de mensagem, mas as relações parecem mais frágeis, passíveis de serem esgarçadas por uma troca errada de palavras.

Franzen não deixou de ser um romancista “panorâmico”, do tipo que busca descortinar o espírito de um tempo, como definiu um crítico. Mas ao buscar se aprofundar na intimidade de seus personagens e questionar o que é o amor, a lealdade ou a “pureza moral”, certamente encontramos menos respostas.

 

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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