[Resenha] Dois Irmãos

Uma briga entre irmãos que nem a distância Manaus-Líbano é capaz de apaziguar. O escritor Milton Hatoum parte desse conflito para desenvolver um romance que esconde, sob a estrutura aparentemente banal de drama familiar, uma crítica social ainda hoje pertinente. Dois Irmãos já foi publicado em mais de dez países e é considerada uma das melhores obras brasileiras dos últimos quinze anos.

Yaqub e Omar são gêmeos, filhos do casal Zana e Halim, ambos de origem libanesa. Nascidos em Manaus, os dois foram criados sob a superproteção da mãe, que sempre teve uma predileção clara pelo caçula Omar. Ainda na adolescência, começa a história de rancor entre os irmãos. A disputa por Lívia, a sobrinha aloirada dos Reinoso, vizinhos da elite manauara, começa em uma noite de cinema na casa de Estelita, a tia da garota. Enciumado com a aproximação de Yaqub e Lívia, Omar revela seu caráter explosivo e fere com uma garrafa estilhaçada o rosto do irmão:

A cicatriz já começava a crescer no corpo de Yaqub. A cicatriz, a dor e algum sentimento que ele não revelava e talvez desconhecesse.

Apostando na distância para amenizar o ódio e apagar da memória o incidente, Halim e Zana decidem mandar Yaqub para uma temporada no sul do Líbano. Omar, a pedido da mãe, é o que fica perto da família, sendo tratado por cinco anos como filho único.

A experiência imposta em uma cultura totalmente distinta devolvem ao Brasil, anos depois, um jovem Yaqub introspectivo e um tanto bruto nos modos, mas sem dúvida mais maduro que o irmão Omar, que crescia na idade, mas não nas responsabilidades.

A família de comerciantes tinha em Manaus uma posição privilegiada, principalmente quando comparada à maioria da população local. Omar se aproveitou disso a vida toda e nunca se dedicou por muito tempo nem à escola, nem a uma profissão. Yaqub, por outro lado, já não se ajustava àquela realidade. A relação conturbada com o irmão o repelia de sua terra natal e do convívio familiar. Mais que isso, Manaus, uma terra esquecida em um país que galopava em seus planos de desenvolvimento, já não comportava suas ambições:

A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico. Estávamos longe da era industrial e mais longe ainda do nosso passado grandioso.

Yaqub anuncia então sua partida para São Paulo, sem aceitar a mínima ajuda dos pais. Ingressa na Escola Politécnica e dá início a uma bem sucedida carreira. Passa a visitar cada vez menos sua família. Quando esses raros encontros acontecem, não leva a esposa e faz de tudo para esconder detalhes de sua nova vida. Toda vez que ele chega, Zana se enche de um orgulho forçado pelo remorso de ter contribuído muito para esse distanciamento. Mesmo assim, nunca deixa de acobertar o caráter frágil de Omar, que ainda vivia das vantagens desse cuidado doentio que a mãe lhe destinava:

No fundo, Omar era cúmplice de sua própria fraqueza, de uma escolha mais poderosa do que ele; não podia muito contra a decisão da mãe, para quem parecia dever uma boa parte de sua vida e de seus sentimentos.

A narrativa de Hatoum começa pelo final. No primeiro capítulo, ouvimos os lamentos de uma Zana atormentada por se sentir culpada pela decadência moral e financeira da família. A partir de então, são reconstruídos todos os antecedentes desse desfecho, pela voz de Nael, um narrador que vive o dilema de ser observador e personagem dessa história.

Nael é filho de Domingas, mulher que personifica todas as contradições dos limites tênues que separam as posições de empregado, família e escravo, em um contexto herdado do colonialismo:

… Domingas, a cunhantã mirrada, meio escrava, meio ama, “louca pra se ver livre”, como ela me disse certa vez, cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família, não muito diferente das outras empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas religiosas das missões, mas todas vivendo nos fundos da casa, muito perto da cerca ou do muro, onde dormiam com seus sonhos de liberdade.

“Louca para ser livre.” Palavras mortas. Ninguém se liberta só com as palavras. Ela ficou aqui na casa, sonhando com uma liberdade sempre adiada.

Os patrões viam em Domingas a índia que resgataram do costume pagão e trataram como família. Embora família, nesse caso, significasse morar “nos fundos da casa” e trabalhar como empregada. O discurso de laços familiares fica ainda mais absurdo quando Domingas é abusada por um dos gêmeos e engravida. A jovem então percebe que não tinha o direito de ser “tão família” assim.

Nael herda o mesmo destino da mãe – viver sem saber ao certo qual a sua origem e qual o seu papel. Todos da família conheciam os laços sanguíneos que o uniam ao garoto, mas isso não impediu que ele fosse criado como uma criança sem pai, fruto de algum descaminho da pecadora Domingas. O avô, Halim, é o único que se preocupava um pouco mais com Nael. Embora nunca tenha tido a força de assumir o parentesco, ele nutria um carinho pelo menino e passava horas contando-lhe histórias. São essas anedotas que dão forma à narrativa, conduzida pela voz de Nael.

Para ele, as palavras foram uma forma de reconstruir a história desconhecida de sua própria vida e, dessa forma, expurgar os rancores que começaram bem antes do seu nascimento e se perpetuaram em todos os membros daquela família.

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras…

A trajetória de abusos, vinganças e declínio da família de Halim pode ser encarada como uma metáfora do ciclo de perdas que o nosso país enfrenta desde a sua origem. Colonizar é obrigar um povo a viver marginalizado, como bastardo, em sua própria terra. Assim como Domingas, os colonizados ora são família, ora empregados, ora escravos – tudo depende do que convém ao colonizador. Ter Nael como narrador desse romance é uma escolha significativa de Hatoum. Ele dá voz a quem teve que se calar a vida toda. É a chance de recontar uma história.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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4 Comentários

  1. Que legal ver “Dois Irmãos” por aqui. Uma dica relacionada ao livro do Hatoum é a adaptação feita por Fábio Moon e Gabriel Bá para HQ. Ficou excelente e acabaram de ganhar mais um Eisner – só o Oscar dos quadrinhos. <3

    • Mariane Domingos

      8 de agosto de 2016 at 11:00

      Que demais, Ana! Fiquei curiosa para conferir esse HQ. Gostei muito da leitura de Dois Irmãos. O texto do Hatoum é delicioso!

  2. Chalita Potter Beckham

    30 de novembro de 2020 at 19:21

    Mais interessante ainda, é ver a cronologia da narrativa, que atiça a singularidade de outrora em memórias póstumas de Brás Cubas.

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