Para a próxima semana, avançamos mais um capítulo, até a página 277 (se você tem a edição da foto).

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O romance de Jacques Lantier e Séverine Roubaud ficou mais intenso, mais cúmplice e também menos discreto nos dois capítulos que acabamos de ler de A Besta Humana.

Mais uma vez o trem Lison, a máquina conduzida por Jacques, foi protagonista. Em uma manhã de sexta-feira, justamente quando Séverine costuma ir à Paris para passar o dia com o amante, com a desculpa de tratar uma enfermidade no joelho, a neve cai pesadamente sobre Le Havre. As ruas, descreve Zola, tinham uma camada de mais de trinta centímetros de espessura de neve.

Na escuridão, porém, a luz forte do fanal parecia ser devorada por toda aquela densidade descorada que caía. Em vez de ser iluminada por até duzentos ou trezentos metros, a via se mostrava sob uma espécie de bruma leitosa, em que as coisas só surgiam já muito próximas, como se viessem das profundezas de um sonho. Como temia o maquinista, logo se constatou – já no primeiro sinal de beira da via – que seria impossível distinguir, dentro da distância mínima regulamentar, as luzes vermelhas delimitando o caminho. Isso levou ao auge sua preocupação.

Jacques não se preocupava apenas com o trem que conduzia ou com os passageiros sob sua responsabilidade. O fato de ter Séverine a bordo fazia com que fosse excessivamente cauteloso. Zola explora muito bem a relação entre os dois e a natureza. A primeira noite que passam juntos é de tempestade forte, o que acirrou os ânimos dois dois, confrontados com a possibilidade de perderem um tempo precioso juntos.

Agora, a tempestade de neve faz com que Jacques se sinta responsável por Séverine. Em certo momento, é até ríspido com a Lison, até então seu único amor e sua companheira na vida.

– Nunca que essa preguiçosa vai conseguir subir! – disse entre os dentes o maquinista, que não era de falar em serviço.

Surpreso em sua sonolência, Pecqueux o observava. Que maneira eram aquelas, agora, de tratar a Lison?

As condições de viagem só se agravariam à medida em que avançavam em direção à Rouen. A neve caía em flocos pesados e se avolumava nos trilhos, já somando sessenta centímetros de altura. As subidas são os piores momentos, porque a Lison perde força diante do peso da neve acumulada. Zola nos faz sentir como se fôssemos nós que estivéssemos ali a guiar um trem daquele porte, em meio a uma tempestade sem trégua.

Finalmente a luz do dia se sobrepunha, mas confundida em sua palidez com a própria neve. Que continuava, mais densa, como se fosse a própria alvorada que caísse, tormentosa e fria, inundando a terra com destroços do céu. Com o dia se impondo, o vento redobrou de violência, arremessando os flocos de neve como rajadas de balas e a todo instante o foguista tinha que pegar sua pá para liberar o carvão no fundo do tênder, entre as paredes do recipiente de água.

Na parada em Barentin, o chefe de estação chega a lhes avisar que um volume de neve considerável havia caído perto de Croix-de-Maufras. Seria uma viagem às cegas, pensa Jacques, mas decidem continuar mesmo assim.

Imediatamente Jacques sentiu que o estado da via mudava. Não estavam mais no plano, num estender infinito do espesso tapete de neve que a locomotiva percorria como um navio, deixando sulcos.

A máquina avança um pouco, mas não é capaz de enfrentar as massas acumuladas nas depressões pelo vento e acaba presa. Juntos, conseguem com pás limpar os trilhos e abrir espaço para que a Lison volte a avançar, mas o alívio dura pouco tempo. Um pouco mais à frente, o trem acaba preso de vez.

A Lison parou em definitivo, expirando no frio intenso. O fôlego se exintiguiu, estava imóvel e morta. (…) Estava bloqueada por todos os lados, colada ao chão, inerte, surda.

Quando a máquina falha, a solução é a boa e velha força humana. Em busca de ajuda, logo são socorridos por Misard, já que o trem ficou preso bem perto da casa do sinaleiro, acompanhado por um trio inusitado: Flore, o quebrador de pedras Cabuche e o agulheiro Ozil. De novo, alguns acontecimentos importantes vão se desenrolar neste pequeno trecho da estrada.

Zola coloca a casa de Misard como uma janela para o mundo. Embora isolada, aquela família vê os trens passarem com tanta frequência e constância que já se sentem até íntimos de alguns dos passageiros. Ao mesmo tempo, aqueles parecem habitantes de outro mundo, gente que passa como um raio e que agora, por acaso, se encontra na sala de casa, se abrigando do frio enquanto tentam soltar o trem:

Dois rostos apenas lhe eram familiares, por tê-los muitas vezes observado no trem, há meses: o do americano e o do rapaz de Le Havre. Examinava-os ali como quem estuda um inseto que afinal pousa zubindo e que não se podia seguir enquanto voava.

A vontade de nos manter alheios às situações, nos mostra Zola, funciona de certa forma como aquela casinha no meio do nada. Enquanto milhares de pessoas passam por ali todos os dias, ninguém se dá ao trabalho de realmente notar o que ocorre dentro da casa:

E tia Phaisie olhava um a um, gente que tinha caído da lua, concluindo não ser surpreendente que pessoas tão ocupadas pudessem andar perto de coisas sujas sem nada perceber.

Diferente dos passageiros apressados, Flore, a quem Jacques tentou atacar no começo do livro, se mantém atenta ao mundo externo. Ela já havia notado a presença constante de Séverine nos trens com direção à Paris todas as semanas e assim que vê os dois trocando algumas palavras desconfia do romance, que será confirmado por um flagra pouco depois.

As testemunhas, aliás, começam a se avolumar. Além de Flore, o foguista Pecqueux, já habituado às suas próprias escapadas do casamento com Victoire, logo percebe que há algo entre os dois. Ele até oferece a casa da esposa, que estava internada, para que os amantes passem a noite.

É assim que Séverine retorna ao cenário onde tudo começou. Foi no apartamento da velha Victoire que ela confessou ao marido seu caso com Grandmorin, foi agredida e escreveu a carta que desencadeou o crime. Embalada pelas lembranças que o local incitava, a jovem decide contar tudo a Jacques. Nesse trecho, Zola demonstra sua maestria na arte da descrição. Sentimo-nos exatamente na cena do crime, vivendo a ansiedade dos assassinos e o desespero da vítima. Embora imaginasse que o amante já suspeitava do envolvimento dela e do marido no crime, Séverine revela seu segredo com cautela, pois tem receio de perder o amor do maquinista.

Não é isso que acontece, mas o resultado é igualmente ruim. Os detalhes da confissão despertam em Jacques o desejo pela morte. Em todo o relato de Séverine, o que mais lhe interessou foi o momento em que ela sentiu, colada ao corpo de Grandmorin, que este já não tinha vida. Percebendo que não podia mais se controlar e que poderia machucar a amante, o maquinista decide sair de casa e liberar seu desejo em outra pessoa. A besta estava de volta:

Desde que deixara o quarto, com a faca, quem agia não era mais ele e sim o outro, tantas vezes pressentido no fundo do seu ser, o desconhecido vindo tão longe, ardendo de sede assassina hereditária.

Jacques sai sem rumo e várias vezes fica muito próximo de consumar sua vontade. Alguns acasos lhe impedem e ele acaba voltando para o apartamento onde Séverine o espera. Depois de uma calorosa recepção, a jovem lança algumas indiretas que reforçam uma suspeita que tínhamos há algum tempo: Roubaud e Jacques não são os únicos a abrigar uma besta dentro de si. Séverine cada vez mais demonstra sua mente maquiavélica. Diferente do marido e do amante, ela parece muito menos passional. Seus comentários e gestos são calculados e escondem objetivos maiores que acabam sempre por beneficiá-la:

Com olhar distante e sombrio, Séverine murmurou, após um silêncio:

– Ah, se eu fosse livre, se meu marido não existisse… como o esqueceríamos rapidamente!

Alguém aqui duvida de que Séverine vai incendiar ainda mais essa história? Vamos aos próximos capítulos!

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