Romances também têm estado de espírito. Não é sempre que queremos nos afundar em livros como É Isto um Homem, de Primo Levi. Há horas que o mundo pede uma leitura mais reconfortante e delicada. E Brooklyn, do irlandês Colm Tóibín, cumpre esse papel com perfeição.

Isso não significa que o enredo seja leve ou floreado, mas os acontecimentos na vida de Eilis Lacey, uma jovem irlandesa que acaba migrando para os Estados Unidos, são tão sutis que o grande tema do livro por vezes parece secundário. No entanto, não se deixe enganar. Como o próprio Toíbin disse certa vez,  “Brooklyn trata do que acontece quando um imigrante é estrangeiro em seus dois países, inclusive em si mesmo”.

Eilis, a personagem principal, é uma menina estudiosa e dedicada, mas suas aspirações se limitam a uma vida pacata na pequena cidade de Enniscorthy, na Irlanda. Ao concluir um curso de contabilidade e escrituração, ela consegue um trabalho como caixa de uma mercearia da cidade, o que em sua avaliação permitiria um pouco mais de conforto para sua mãe e irmã.

É uma vida de “não-acontecimentos”, marcada pelos horários na loja, onde ela observava os clientes e os hábitos pouco ortodoxos de negociação de sua patroa, a srta. Kelly:

A srta. Kelly informava a alguns de seus fregueses, inclusive a duas mulheres, que, por serem amigas de Rose, cumprimentaram Eilis de maneira familiar, que ela tinha uns tomates frescos muito bonitos. Ela mesma os pesava, parecendo impressionada com o fato de Eilis conhecer aquelas freguesas, mas a outros clientes, no entanto, dizia com toda firmeza que não tinha tomate nenhum para vender naquele dia.

A vida pacata de Eilis só teria um sobressalto quando sua irmã, Rose, lhe apresenta o padre Flood, vindo dos Estados Unidos. Ao contrário de Eilis, que parecia limitada por sua própria falta de ambição, Rose era uma mulher forte, determinada. Sustentava a irmã e a mãe, jogava golfe, era vaidosa e, perto dos 30 anos, ainda não havia casado, um assombro para a época. Rose parece determinada a não permitir que Eilis tivesse o mesmo destino que o seu.

Em um chá na casa da família, o padre menciona que em sua paróquia, no Brooklyn, nos Estados Unidos, haveria trabalho para jovens como Eilis e por uma salário maior. A menina sente o desconforto na sala:

O silêncio de Rose é que era a novidade para ela; Eilis olhou para Rose, na esperança de que a irmã fizesse alguma pergunta ou algum comentário, mas ela parecia estar numa espécie de sonho. Enquanto Eilis a observava, espantou-se ao se dar conta de que nunca tinha visto Rose com um aspecto tão bonito. Então lhe ocorreu que já estava sentido que teria de se lembrar daquela sala, de sua irmã, daquela cena, como que à distância.

A decisão de viajar, porém, nunca foi de Eilis, apenas carregada pelos acontecimentos. Antes mesmo de partir, ela já se sentia estrangeira.

(…) então lhe veio o pensamento inesperado de que ficaria muito feliz se aquela mala fosse aberta por outra pessoa, que ia cuidar das roupas e sapatos e usá-los todos os dias. Eilis preferia ficar em casa, dormir naquele mesmo quarto, morar naquela casa, sem aquelas roupas e aqueles sapatos.

Ao mesmo tempo, Eilis sabe que a irmã estava, com aquela decisão, abdicando de poder seguir com a sua vida para dar espaço para que a irmã fugisse de Enniscorthy. Não é liberdade, porém, o que Eilis sente ao entrar no navio rumo aos Estados Unidos. Sua jornada de solidão, estranhamento e desamparo só estava começando.

A transição da personagem para sua nova vida nos Estados Unidos é marcada pela náusea e o enjoo da viagem. Se reclamamos de oito horas de voo apertados entre poltronas que praticamente não reclinam, é porque nos esquecemos que há poucas décadas as viagens eram feitas de navio, sob as piores condições possíveis. A cabine de Eilis é pequena, sem janela ou ventilação, com um banheiro minúsculo e espaço no quarto que mal dava para uma pessoa, quanto mais para as duas que deveriam fazer aquela viagem.

As coisas não melhoram muito quando ela chega aos Estados Unidos. A vida americana de Eilis é tão prosaica quanto eram seus dias na loja da srta. Kelly, com o agravante de que ali nem o chá tem o mesmo gosto de casa. Estar do outro lado do continente não quer dizer que ela seja mais bem tratada por clientes ou colegas de trabalho e quase todas as atividades, até mesmo comprar “roupas americanas”, são desafiadoras. Seus dias se alongam:

Só mais tarde, quando Eilis chegava em casa e se deitava na cama depois do jantar, era que o dia que ela havia acabado de viver parecia um dos mais compridos de sua vida, enquanto se via revivendo todo ele, cena por cena.

Eilis, no entanto, não tem nem a força para se indignar. Toíbín mostra nas entrelinhas como o destino daquela personagem não estava em suas mãos. Nunca esteve. Todas as decisões importantes da menina foram foram tomadas aleatoriamente; ela só seguia o fluxo dos acontecimentos.

Por isso, sua reação não poderia ser diferente quando ela recebe uma carta do outro lado do Atlântico. Já muito mais adaptada ao cotidiano do Brooklyn, prestes a se formar em contabilidade,  noiva de Tony, um descendente de italianos que se apaixona por ela, Eilis mesmo assim não consegue tomar as rédeas da situação e se vê obrigada a encarar sua cidade novamente.

O reencontro com sua suposta identidade, no entanto, não torna sua vida mais clara, nem mais fácil.  Tudo volta a lhe ser estranho, assim como nos primeiros dias nos Estados Unidos. Até as pessoas notam que ela mudou naquela temporada, já não a reconhecem mais. Ser imigrante é ter os pés em dois lugares e, por vezes, a cabeça em nenhum deles.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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