[A Máquina de Fazer Espanhóis] Semana #9

Os fantasmas do presente e do passado perturbam os dias de António no Lar da Feliz Idade. A morte de dona Marta e os problemas de saúde do senhor Pereira resgatam memórias que o narrador julgava esquecidas. Na próxima semana, avançamos mais dois capítulos de A Máquina de Fazer Espanhóis – até a página 211, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 202, se você tem a edição da Cosac Naify.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Delírio, sentimentos represados e confusão mental. A luta do corpo são contra a cabeça doente é um dos temas desse trecho da leitura. Na figura do próprio António e também do senhor Pereira, que começa a fazer xixi na cama como uma criança, Valter Hugo Mãe põe em discussão a tragédia que é a decadência do órgão responsável por moldar nossa condição humana:

a velhice, pensei, é o cérebro que alui corpo abaixo, até ficar a atrapalhar o funcionamento dos outros órgãos.

A maneira como António reage ao sofrimento do companheiro, que passa por uma fase taciturna, cheia de vergonha, é um gancho para o escritor nos revelar um pouco mais do passado do nosso narrador e como certos acontecimentos impactaram na formação de sua personalidade.

António se vê incapaz de agir como um amigo diante do senhor Pereira. Segundo ele, a amizade é um laço que lhe falta. Ser um homem de família sempre foi muito natural e essa posição se sobrepôs a qualquer outra relação que ele pudesse ter.

O jovem revolucionário que conhecemos nos capítulos anteriores volta a aparecer, mas desta vez revela um lado menos nobre de António. Quando a polícia política começa a encurralar o barbeiro com perguntas, ele não resiste e entrega o rapaz, dando detalhes de seus hábitos como cliente do estabelecimento.

É evidente que esse fato é um fantasma na vida de António. À época, a saída que ele encontra para lidar com o problema é imaginar o jovem como alguém totalmente desvinculado de sua realidade. Mais um, como tantos que ele viu na televisão, a ser preso pelo regime.

António tenta apagar sua participação se convencendo de que todo aquele assunto de política não lhe dizia respeito. Parecia uma questão tão maior que sua rotina prosaica ao lado de Laura. Era impossível que suas “pequenas” intervenções fossem tão definitivas.

Essa postura estimula uma ótima reflexão sobre a propensão humana para se afastar das discussões de grandes problemas, sob a justificativa de não conseguir ajudar em nada quando a amplitude do mundo esbarra na insignificância da existência individual. A dificuldade das pessoas de enxergar o coletivo quando as respostas não são fáceis é exposta brilhantemente por Hugo Mãe:

como achamos sempre que intimamente não nos dizem respeito as questões verdadeiramente universais. esperamos que exista no universo uma entidade maior, tentacular e poderosa, que venha obviar estas situações e nos desculpe o não envolvimento, o nenhum compromisso, porque somos pequenos, apenas um grão de areia no cosmos infinito e desmobilizamos sem forças físicas nem mentais. o compromisso, pensei eu a vida inteira, é algo restrito e que se tabela pela mais premente sobrevivência.

Esse distanciamento, porém, não passa de uma ilusão, como tantas outras que cultivamos ao longo da vida, a partir de um esforço enorme para acreditar que são verdadeiras. Hugo Mãe alude a essa questão em vários trechos dos últimos dois capítulos.

Dona Marta, por exemplo, queria acreditar que as cartas de amor que recebia eram do marido há muito tempo sumido, e morreu com essa crença. Certo dia, Américo entra no quarto de António para lhe devolver o maço de folhas que havia escrito para a mulher. António se sente culpado, mas não vê outra saída a não ser guardar os papéis, porque aquele amor inventado era seu amor transcrito.

Para António, cada vez mais os acontecimento no Lar da Feliz Idade têm aparência de ilusões. Primeiro, quis acreditar que era possível sentir a presença de Laura no cemitério. Em suas visitas, porém, não vê o menor indício de que ela está ali presente e até a imagina o enxotando para fazer algo mais útil, se estivesse viva. Outra desilusão vem com Esteves. O barbeiro passa a ter a convicção de que a história de que ele havia inspirado um personagem em um poema de Fernando Pessoa era mentira.

António expõe esses conflitos internos ao doutor Bernardo, com quem, não sabe por qual razão, tem o hábito de se abrir. E aí Valter Hugo Mãe nos traz uma daquelas frases que nos lembram por que ele é um autor tão brilhante:

os ratos não falam. isso não existe. Ele levantou-se para me acompanhar à porta, eu que já estava de pé e quase saindo, e respondeu-me, muito do que não existe é do mais importante da vida, não despreza nada, senhor silva, agarre-se a uma fantasia se for boa, que a realidade é bem feita desses momentos mais espertos de lhe fugirmos de vez em quando.

De uma realidade, porém, António não tem conseguido fugir. Ele se debate com a culpa por ter matado dona Marta e tenta se iludir de que o episódio não passou de um devaneio, mais um pesadelo assustador incitado pelos abutres que habitam seus sonhos. Os trechos sobre a noite em que António teria entrado no quarto de dona Marta e a abatido com golpes de livro na cabeça são sempre descritas com um tom de film noir, algo que fica na fronteira entre a realidade e a imaginação. Mas, aqui também, talvez seja só um meio de António tentar se enganar sobre o mal que habita em si.

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2 Comentários

  1. Estava torcendo muito para que fosse só um devaneio do Senhor António ou até mesmo que ele estivesse enlouquecendo quando ele narra a noite em que entrou no quarto de dona Marta.
    Em seguida descobrimos que ele anos atrás entregou um cliente de sua barbearia à polícia política.
    Tendemos a achar que os idosos são sempre inocentes velhinhos, e tudo indica que o Senhor Antônio tem um caráter bastante duvidoso, e que as pessoas não se modificam com o avançar da idade.

    • A infantilização dos idosos é um aspecto tratado brilhantemente por Valter Hugo Mãe. A todo momento, ele nos lembra como essa postura é incoerente e nociva. O comportamento de António na velhice não é nenhuma surpresa ou desatino. É resultado de todas as suas experiências ao longo da vida.

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