Ler a ficção de David Foster Wallace é conhecer uma nova literatura. O escritor americano, considerado um dos grandes autores contemporâneos, usa e abusa de experimentalismos de forma e linguagem para compor uma narrativa que parece exigir do leitor quase o mesmo esforço que o próprio Wallace empreendeu para escrevê-la.

No livro de contos Breves Entrevistas Com Homens Hediondos, há histórias curtas, outras mais longas, todas orbitando em torno do mesmo tema: a monstruosidade que pode existir dentro de uma pessoa.

Na série de textos que dá título ao livro, por exemplo, os personagens são homens que dão entrevistas a uma interlocutora mulher, que nunca aparece. Em seus depoimentos, eles expõem toda a imoralidade de seus pensamentos e atitudes.

O tom confessional das narrativas mostra, além dos fantasmas desses personagens hediondos, a necessidade que eles têm de compartilhar os desejos tortos que os habitam. Em alguns momentos, fica a impressão de que se trata apenas de um exibicionismo frio e perturbador. Em outros, os personagens aparecem como pessoas vulneráveis que encontraram na narrativa uma possibilidade de dividir o fardo que carregam e de buscar a redenção.

No conto A Pessoa Deprimida, o meu preferido da coletânea, Wallace descreve com exatidão o que é essa ânsia por compartilhar, ao destrinchar um tema que lhe é muito próximo: a depressão (o escritor suicidou-se em 2008, depois de anos lutando contra essa doença). Um narrador em terceira pessoa esmiúça a consciência de uma vítima da depressão e ironiza a ineficácia dos tratamentos que fingem entender o que se passa com o paciente. O primeiro parágrafo já mostra que, embora pareça fria e calculista, a pessoa deprimida é, na verdade, um indivíduo vulnerável que sofre, sobretudo, pela impossibilidade de expressar sua angústia:

A pessoa deprimida estava com uma dor terrível e incessante e a impossibilidade de repartir ou articular essa dor era em si um componente da dor e fato de contribuição para o seu horror essencial.

Outra característica da ficção de Wallace, bastante presente nesses contos, é a metanarrativa. Em um dos textos curtos intitulados Pop Quiz 9, o autor expõe a agonia de um escritor de ficção que se desdobra para agradar o leitor:

Você é, infelizmente, um escritor de ficção. (…) Existem meios certos e frutíferos de tentar uma relação de “empatia” com o leitor, mas ter de tentar se imaginar como o leitor não é uma delas; na verdade isso fica perigosamente perto da pavorosa armadilha de tentar prever se o leitor “gostará” de alguma coisa em que você está trabalhando e tanto você como os poucos escritores de ficção de quem você é amigo sabem que não há meio mais rápido de se amarrar com nós e matar qualquer urgência humana na coisa que você está trabalhando do que tentar calcular previamente se essa coisa será “apreciada”.

A relação de Wallace com a escrita, pelo que contam as pessoas próximas a ele, era de uma busca incessante pela perfeição. A cada obra, por mais brilhante e original que ela fosse, ele queria se superar. Sua obsessão pelo uso correto e preciso da língua inglesa, muito evidente nos seus textos, é apenas um sintoma dessa necessidade. No aniversário de oito anos de sua morte, em 2016, o autor de livros infantis Mac Barnett, escreveu um artigo para o The Guardian sobre Wallace, que foi seu professor e mentor:

Ele estava sempre falando sobre as responsabilidades do escritor: a responsabilidade de ser claro, a responsabilidade de ser interessante. É justamente porque a obra de Wallace pode ser difícil, porque ele exige que o leitor trabalhe, que ele queria ter certeza de que estava fazendo seu trabalho também, dizendo exatamente o que ele pretendia, de maneira envolvente. Outra fala dele que guardo anotada em meu caderno é: “Se você está mais interessado no que você está dizendo do que a pessoa que lhe ouve está, você é a definição de uma pessoa entediante.”

A ficção de Wallace é desafiadora. Em um primeiro momento, os temas pesados, a enxurrada de notas de rodapé, o vocabulário rebuscado, as frases intermináveis, os neologismos parecem uma barreira instransponível. Mas vale a pena resistir e se dedicar, porque em meio a páginas e páginas de uma leitura difícil, você encontra trechos que pagam todo esforço pelo brilhantismo de conteúdo e linguagem. Wallace era exigente consigo mesmo, não poderia ser diferente com seus leitores.

ps.: Para um iniciante em Wallace, não recomendo começar por sua ficção. O livro de ensaios Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, que comentamos bastante por aqui, é a melhor escolha para conhecer a escrita do autor americano. Seus textos não-ficcionais são uma ótima amostra do estilo que ele aprofunda e aprimora em seus contos e romances.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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