Enquanto os planos de Trudy e Claude para assassinar o pai do narrador ficam cada vez mais claros, o feto inteligente começa a se fazer a pergunta que parece ser chave para essa trama: qual é seu poder de vingança? Ian McEwan consegue nos deixar mais curiosos a cada página. Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 96.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A leitura de Enclausurado continua a nos impressionar pela capacidade com que McEwan desenvolve uma personagem que poderia ser insossa. Entre comentários sarcásticos e mordazes, o feto narrador também reúne cada vez mais indícios de como será o crime que poderá matar seu pai.

Claude pretende assassinar John Cairncross com um anticongelante (em pleno verão, nota o sarcástico feto) dissolvido em alguma bebida, provavelmente uma vitamina. Depois de concretizado o plano, ele e Trudy mencionam também a intenção de “colocar” o bebê em algum lugar.

Colocado não passa de um sinônimo mentiroso para abandonado. Como bebê é um sinônimo de mim. Em algum lugar também é uma mentira. Mãe cruel!

Difícil discordar da lógica do narrador. Entre o desespero de uma visão apocalíptica de futuro, no qual ele terá sido mandado para algum lugar paupérrimo, o futuro bebê decide se manter estoico. A construção de sua personalidade, que quase sempre tenta remar contra a vulnerabilidade emocional de sua mãe e a idiotice de seu tio, denota a habilidade de McEwan como romancista. Sem muitas armas com que se defender, a consciência de seu “eu” como algo oposto ao que lhe é apresentado todos os dias parece ser sua salvação.

A adversidade nos obrigou a ter essa capacidade de percepção, e funciona, ela nos aferroa quando nos aproximamos demais do fogo, quando amamos demais. Essas sensações são o começo da invenção do eu.

Outro eu que vemos “nascer” ao longo da leitura é o de Trudy. Por estar fisicamente e emocionalmente ligada ao narrador, temos mais detalhes sobre os dilemas que o iminente assassinato lhe causam:

A criança sente uma pontada quando ouve a mãe chorar. Ela está se defrontando com o mundo inominável que construiu, com tudo que consentiu, com seus novos deveres, que preciso listar outra vez: matar John Cairncross, vender o que era dele por direito de herança, dividir o dinheiro, abandonar o menino. Eu é que deveria chorar.   

O narrador oscila entre a crença na natureza bondosa da mãe e as dúvidas sobre seu caráter. Trudy alterna momentos de emoção e manifestações bastante racionais, como quando Claude começa a revelar detalhes do plano criminoso. O que mais a choca não é o ato em si, nem os métodos, mas sim a completa isenção do seu cúmplice. Claude não quer correr risco algum. Todas as provas que levam a ele devem ser destruídas, enquanto Trudy fica totalmente vulnerável.

A parceria entre os amantes apresenta os primeiros ruídos. Seria essa uma brecha para o feto usar sua possível influência sobre a mãe e mudar o jogo?

Tratarei de prendê-la com este cordão escorregadio, ameaçá-la no dia de meu nascimento com olhar estonteado e furibundo de um recém-nascido, um grito solitário de gaivota para arpoar seu coração.

As alternativas para derrubar o plano de Claude começam a bombardear os pensamentos do feto. “Nasça e aja”, reflete, embora saiba que fora do útero de Trudy terá tão pouco poder quanto de ponta cabeça, na barriga de sua mãe. E, mesmo que essas limitações não existissem, reflete, a vingança que imagina em sua cabeça talvez seja apenas uma quimera.

Começo a desconfiar que minha impotência não seja transitória.

Mesmo que tivesse músculos e armas, ele se questiona, poderia de fato destroçar o crânio de seu tio? E quais seriam os passos seguintes? Matar também sua mãe? Ser preso? Ao trazer a narrativa de Hamlet para os dias atuais, Ian McEwan coloca o conceito de vingança em outra perspectiva. A justiça e o poder da violência são agora prerrogativa do Estado, não há mais espaço para crimes em defesa da honra. O que, portanto, o feto pode fazer para não ser cúmplice deste assassinato?

Para saber o fim dessa história, temos cada vez mais certeza, não basta ler Shakespeare.

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