O fim de Enclausurado foi o ponto alto de uma narrativa que nos surpreendeu do começo ao fim, da escolha do narrador às observações cáusticas sobre a realidade. Uma releitura de Hamlet, de Shakespeare, para ninguém colocar defeito. Gostou do livro tanto quanto a gente? Mande seu comentário para blogachadoselidos@gmail.com que publicaremos as mensagens recebidas na próxima sexta-feira. E fique de olho nas nossas redes sociais. Em breve, divulgaremos o novo título do Clube do Livro, com direito a sorteio, como sempre!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Entre todas as leituras que fizemos aqui no Clube do Livro do Achados e Lidos, o final de Enclausurado, de Ian McEwan, talvez tenha sido o que mais nos deixou curiosas.

O escritor conseguiu transformar um desfecho banal e esperado em um acontecimento surpreendente e decisivo para a trama. Afinal, se o narrador estava no útero da mãe, era natural que o nascimento ocorresse em algum momento, não é? São as sutilezas com que McEwan conduz a narrativa, no entanto, que tornam o que é certo tão fantástico.

Depois de se refestelarem com um banquete de comida dinamarquesa, que rende comentários prazerosos do feto sobre arenque e outras iguarias típicas do país, há uma tensão crescente que paira no ar, à espera de algum telefonema que, todos parecem pressentir, inevitavelmente virá.

A ligação da inspetora-chefe e sua decisão de visitar a casa, em vez de tomar o depoimento do casal, acende a luz amarela. As passagens neste trecho são hilárias, como aquela na qual os dois tentam decorar o roteiro que deverão contar quando forem confrontados pela polícia.

“Rapidinho”, diz Claude por fim. “Vamos fazer isso. Onde a briga começou?”

“Na cozinha.”

“Não. Na porta de entrada. Foi sobre o quê?”

“Dinheiro.”

“Não. Botar você pra fora. Há quanto tempo ele andava deprimido?”

“Anos.”

“Meses. Quanto emprestei para ele?”

“Mil.”

“Cinco mil. Meu Deus, Trudy.”

“Estou grávida. Afeta a memória.”

Quando a inspetora-chefe Allison, com o peso de seu cargo, chega à casa, temos certeza de que tudo vai ruir. A naturalidade com que McEwan entremeia diálogos com as percepções do feto sobre o jogo de cena travado na cozinha é sensacional. Claude e Trudy buscam entender as mensagens ocultas nas perguntas da investigadora, mas quase nunca acertam. Já Allison, com habilidade ímpar, fornece, migalha a migalha, os elementos dos quais precisamos para entender que, enfim, eles foram pegos.

O primeiro deles é o papel de Elodia nesta história. A visita da amante de John, que na conversa com o casal pretendeu ser apenas uma poeta impressionada por seu mentor, foi decisiva, aparentemente, para que a inspetora assumisse o caso. Trudy e Claude, absorvidos pela necessidade de acreditar que tudo estava sob controle, não tiveram malícia suficiente para observar que a visita da jovem teve o único intuito de assegurar à Elodia que os dois haviam assassinado o poeta que ela tanto admirava. A limpeza dos andares inferiores, em contraste com a sujeira dos superiores, certamente lhe despertou atenção.

Como num jogo de Detetive, a inspetora também aponta as armas do crime e tenta traçar a relação dos personagens com os objetos – o chapéu, as xícaras de café. Chegamos, enfim, à luva, quando vem o xeque-mate:

“Uma coisa engraçada. Outra vez meu pessoal técnico. Telefonaram hoje de manhã e me esqueci completamente. Eu devia ter contado a vocês. É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo… Cortes do pessoal que trabalha nas ruas. Onda de crimes na região. Enfim. Indicador e polegar da luva direita. Imagine só. Um ninho de pequenas aranhas. Uma porção delas. E, Trudy, você vai gostar de saber disto – os filhotes estão indo muito bem. Já estão rastejando!”

Reconhecida a derrota, há um momento em que Trudy e Claude ficam inertes, até que uma aparição fantasmagórica emerge do topo da escada, com a camisa com traços de vômito, um esgar no lugar do sorriso. John voltou dos mortos para se vingar do crime.

Ao evocar o fantasma do pai de Hamlet, que aparece na obra de Shakespeare, tomamos uma espécie de susto: na narração do feto, as cenas imaginadas ganham um aspecto absurdamente real.

No entanto, tudo não passava de um ato de imaginação. Quem protagonizará a verdadeira vingança é o feto. Enquanto Claude e Trudy reúnem passaportes e fazem as malas para fugir da Inglaterra para a Bélgica e tentar viver longe das garras do Leviatã, como o narrador se refere ao poder do Estado, o acontecimento pelo qual esperamos por todo o livro toma forma: a bolsa de Trudy se rompe.

Mas eles não vão. Depois de todas as minhas considerações e revisões, lapsos de percepção, tentativas de autoaniquilação e tristeza pela passividade, tomei uma decisão. Chega. A bolsa amniótica é o saco translúcido de seda, bom e forte, que me contém. Preserva também o fluido que me protege do mundo e de seus pesadelos. Não mais.

Claude, o rato da narrativa, ainda tenta fugir e abandonar Trudy em trabalho de parto, mas descobrimos que ela também já estava preparada para esse desfecho. Os passaportes estão escondidos e ele é obrigado a ajudar no nascimento do que será seu pequeno algoz.

As cenas de muita ação não impedem que o trecho final do livro tenha ainda várias reflexões. O feto se vê intimado a tomar uma decisão sobre seus dilemas existenciais. O nascimento é inevitável e, com ele, não é mais possível se omitir. Preferir sua liberdade significa cumplicidade. Ele terá um começo de vida menos traumático se os assassinos saíssem impunes.

O egoísmo desse desejo incomoda o narrador. O feto se apoia no amor que sente, ou deveria sentir pela mãe, para justificar a tendência egocêntrica. Mas, ao final, nem ele mesmo consegue conviver com a injustiça dessa atitude. Forçar seu nascimento é a sua forma de expressão.

O jogo que McEwan faz com a moralidade é outra força do romance. Ao abdicar da habitual inocência que domina personagens infantis, o escritor garante a originalidade da obra. O desconhecimento que o feto tem do mundo não fazem dele um narrador inocente.

A partir do momento que surge sua consciência, logo nos primeiros capítulos, não faz mais sentido se esconder atrás de uma suposta incapacidade de julgamento. McEwan sutilmente nos diz: mesmo quando a impotência parece aniquiladora, a omissão não é a resposta. Sempre há uma forma de agir, de driblar a indiferença e a cumplicidade.

O feto está diante de uma trama de assassinato, mas a premissa que McEwan expõe não precisa de enredos mirabolantes para se fazer verdadeira. Quantas vezes nos escoramos em nossa impotência para apenas lamentar e não agir diante de situações opressoras ou injustas?

Omitir-se não é uma postura que McEwan tem neste romance. Um dos motivos que fazem a leitura de Enclausurado fluir tão bem é a conexão com a realidade em que vivemos. O escritor não poupa comentários sobre os rumos do mundo e, especialmente, da Europa. Uma das últimas análises políticas que o feto faz é uma das passagens mais primorosas do livro. Ao falar sobre o movimento migratório dos refugiados, ele destaca a postura hipócrita do Velho Continente, outrora tão afoito em desbravar e agora tão preocupado em proteger as suas fronteiras:

Se, como prega o novo clichê, isso é bíblico, os mares não estão se abrindo para eles, não o Egeu, não o Canal da Mancha. A velha Europa tem sonhos agitados, vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem.

Embora o mundo não esteja em seu melhor momento, a narrativa de McEwan não cai no poço sem fundo do pessimismo. O estilo irônico e bem humorado, que já é uma marca do escritor britânico, ameniza o peso da realidade. Por mais que o feto tenha plena consciência do que o espera, a possibilidade de existir o seduz e supera qualquer receio quanto ao ambiente hostil. O nascimento do narrador é a insistência da vida diante do caos do mundo:

Estou respirando. Que delícia. Meu conselho para os recém-nascidos: não chorem, olhem ao redor, sintam o sabor do ar. Estou em Londres. O ar é bom.

Viver enclausurado, indiferente e omisso, nunca será a resposta, porque, apesar da desordem, “o ar é bom”. A liberdade, caros leitores, é uma dádiva.

Ps: Vale a pena ver Wagner Moura lendo alguns trechos de Enclausurado, na comemoração de 30 anos da Companhia das Letras.

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