O Amor dos Homens Avulsos avançou um pouco mais nas memórias do narrador sobre sua juventude e a relação com Cosme, o menino que chegou de repente para mudar sua vida. Victor Heringer continua a nos mostrar uma voz extremamente madura para um autor tão jovem. Está gostando da leitura? Para a próxima semana, vamos até o capítulo 34, na página 66.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Quando Cosme volta para casa, após o breve sumiço, a reação do narrador não é das melhores. O ódio que ele dizia sentir pelo garoto se materializa em uma agressão que acaba mal para os dois. Cosme ganha um machucado no rosto e o narrador tem o braço engessado.

Com habilidade, Victor Heringer consegue construir várias camadas de sentimentos tendo como ponto de partida esse ato de violência. Há o ódio, sobre o qual falamos na semana passada, que vem do estranhamento que a chegada do menino causa no garoto em um primeiro momento.

Posteriormente, a raiva se mistura ao ciúmes. Cosme, depois de um período de reclusão e silêncio, passou a brincar e conversar com Joana, sua irmã, correndo de um canto ao outro da casa, algo impossível para o menino manco. O breve aceno da mãe ao menino, quando ela volta do enterro da avó, causa então o rompante de agressividade.

Mas nessa relação há, sobretudo, um amor que se inicia. A violência que marca o primeiro contato dos dois meninos parece ser a reação instintiva de um garoto que luta contra as sensações que Cosme lhe desperta, ainda que inconscientemente. O narrador está descobrindo sua sexualidade e a preferência por meninos. No processo de autoaceitação, atração e repulsa se misturam.

Mais uma vez, Heringer entremeia as memórias com observações delicadas sobre a natureza humana, emoções e estados de espírito. A depressão do narrador, que vê a morte sem preocupação, é comparada a um resfriado forte e permanente, daqueles que precisam mais do que remédios sem receita para serem curados.

Imagina viver a vida inteira assim, sempre dois ou três tons abaixo dos homens saudáveis, sempre suspeitando o pior. O pior, no meu caso, é bem pior do que o seu. Dois ou três tons abaixo.

São observações assim que dão o estofo necessário para a carga sentimental das lembranças do narrador.

O episódio de violência entre os meninos marca também o fim do verão e, em outras palavras, o final das férias. O retorno de Cosme à escola rende outro ótimo trecho do livro. Enquanto relembra como são seus colegas de classe, o personagem faz uma reflexão acerca dos tipos humanos. Segundo ele, toda a “fauna” humana estava bem representada em seu ambiente  escolar. Segue, então, uma descrição de cada um dos seus colegas, em que nomes não são revelados, para, justamente, servir ao propósito de definição de tipos e não de individualidades.

Tenho certeza de que minha turma serviu de molde para todos o seres humanos do planeta. A espécie inteira foi resumida naquelas quarenta pessoas (contando comigo), todas as tendências e temperamentos foram representados. (…) A humanidade não vai além desses quarenta tipos. Por isso não mantive contato com nenhum dos meus velhos colegas de classe: não preciso, encontro um deles sempre. (Mundo pequeno.)

O narrador consegue, inclusive, classificar o pai, a mãe e a irmã de acordo com as categorias que criou. Sobre o pai, ele diz ser como “L. D. de A. F.”:

Chutou a cabeça de um coleguinha e foi expulso do colégio.

Essa percepção nos leva a um outro detalhe importante revelado nesse trecho da história. Vasculhando correspondências da mãe, já na fase adulta, o narrador descobre que a chegada de Cosme não estava relacionada a nenhum sentimento nobre de ajuda a um órfão, pelo contrário. Tudo leva a crer que seu pai contribuía para tortura de presos políticos durante a ditadura e que Cosme poderia até ser fruto de abusos que ele cometeu contra alguma mulher nessa situação.

A mãe falava disso com horror nas cartas, o que parece explicar melhor sua reclusão, as crises de dor de cabeça e seus desaparecimentos esporádicos. A repulsa pelo marido a levaria a se separar dele um ano depois do verão retratado na história, não sem antes algumas idas e vindas. Como o próprio narrador a caracteriza, recorrendo aos tipos humanos que ele definiu, ela era “bonitinha, arrumadinha, branquinha, donzelinha, a maioral”. E esse tipo não viveria com um médico dos porões da ditadura, tampouco o enfrentaria.

O narrador já adianta os finais não muito promissores que os pais tiveram. Mas, ao mesmo tempo, parece não acreditar muito em uma justiça terrena ou divina aos crimes cometidos pelas pessoas:

Mas, se tudo bate, papai deve estar na eterna queima de arquivo que é o inferno. Ou que nada, a gente morre e some no vácuo, o corpo aduba as árvores e quem se lembra de nós um dia morre também.

O relato do narrador surge como uma tentativa de dar a Cosme uma justiça mais duradoura que o simples esquecimento. Registrar suas memórias é impedir que a história do garoto morra com ele.

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