Nos últimos capítulos, o narrador, Camilo, passou a desbravar o bairro do Queím, com novos personagens agregados à história de O Amor dos Homens Avulsos, de Victor Heringer. Essa incursão pelas ruas vizinhas revela uma realidade de pobreza e miséria no Brasil dos anos 70 que até aqui ainda havia passado despercebida pelo narrador, mas que parece ser chave para o desenrolar da história, especialmente do relacionamento do menino com Cosme. Com a curiosidade aguçada pelas últimas páginas, vamos ler, para a próxima semana, até o capítulo 47, na página 87.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Depois da violência cometida contra Cosme, Camilo, o narrador de O Amor dos Homens Avulsos, ganhou um salvo-conduto para perambular pelo bairro do Queím, até então uma proibição expressa. Nessas incursões pela vizinhança, ele encontrou novos personagens e, principalmente, a pobreza e a miséria que habitam bairros quentes e abafados do subúrbio do Rio de Janeiro.

O bairro é minúsculo, mal aparece nos mapas em escala maior, mas quando Cosmim me apresentou a rua (agora eu podia brincar lá fora, era homem-macho, sim), o Queím se agigantou tanto ao redor que o ar chegou a ficar rarefeito.

A descoberta das ruas e tipos do bairro é contada da mesma forma singela com que o autor do livro, Victor Heringer, aborda todos os temas. O narrador descreve os meninos pelo que é visível, o contraste entre ele e os demais tipos do bairro. Muito mais não precisaria ser dito:

A segunda coisa que vi na rua foi um semicírculo de gente me esperando. Eu, o mais branco de todos e o mais jovem, fui apresentado a cada um.

Os meninos, de chinelo, “pés sujos e cascudos”, sem camisa, representavam uma nova realidade para o narrador.

Foi a primeira vez que percebi que vivia entre gente pobre. Talvez eu fosse pobre também? Não. Logo eles deixaram claro que eu era o diferente – diferente para-o-bem, não diferente para-o-que-pena (o que sempre foi mais comum).

Já adulto, Camilo faz uma reflexão breve, mas pungente, sobre a realidade do bairro e de sua vida, sobre o triste destino de Cosme, o papel de seu pai como “anjo da ditadura”, sobre o estado latente de violência a que todos somos submetidos, mas em especial os mais pobres.

Sempre quis acreditar, ao avesso, que eu poderia me convencer de que tinha inventado tudo isso, inventado Cosmim e a morte de Cosmim, um assassino marido de babá, meu pai anjo da tortura. (…) Que outro mundo destes é possível, um quase idêntico (com minha perna ruim, com Queím e tudo, Brasil, miséria e tristeza, não tem problema), mas um pouco menos hediondo.

A tendência do mundo para o ódio é uma premissa que não escapa à narrativa. A cada capítulo, Heringer nos coloca diante de situações cotidianas em que esse sentimento está presente, de maneira sutil ou mais direta. Nessa última leitura, temos o caso da senhora que agrediu um ator de novela porque o personagem que ele interpretava era um vilão inescrupuloso:

Mas a senhora não sabe que era novela? Sabia – claro que sabia, não estava gagá, não era idiota. Odiava mesmo assim.

O ódio é um sentimento irracional que subsiste a despeito da racionalidade que é atribuída à raça humana. Ele se manifesta sobretudo na forma da violência, moldando, inclusive, as condições físicas da espécie:

Deu no jornal um dia desses: os cientistas descobriram que o rosto humano foi moldado para resistir aos socos. Temos esta cara porque a espécie passou milhões de anos levando porrada. Nossas mãos têm esse formato porque evoluíram para fazer punhos e bater.

Se nos sentimos cada vez mais na pele de Camilo, muito é por causa da linguagem adotada por Heringer. O texto é coloquial, cativante, até mesmo aconchegante. Ele alterna neologismos e onomatopéias com trechos descritivos de acontecimentos marcantes, elevando a sensação de participação ativa nas cenas.

A oscilação na perspectiva de Camilo, ora na infância, ora na fase adulta, é outra riqueza da narrativa. As opiniões bem elaboradas e menos otimistas de um personagem mais experiente contrastam com o olhar curioso do menino, ávido pelas descobertas, mais apegado às exterioridades que as sutilezas das entrelinhas. Isso, no entanto, não quer dizer que o garoto não percebesse os sentimentos. A sensibilidade para captar as emoções são o ponto comum entre “os dois narradores”. A diferença é que um deles, o mais maduro, consegue identificar com mais clareza os gatilhos sociais para os arroubos da alma humana.

Afundado nas recordações, o Camilo adulto nota que, mesmo entre esses garotos mais pobres, Cosme sempre estava em desvantagem: por desconhecer suas origens, por ser um órfão abandonado, por viver no quarto de empregadas da casa rica da vizinhança. Ainda não sabemos exatamente o que aconteceu com o menino, mas descobrimos que ele também foi vítima da violência que paira sobre o bairro.

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