“Mais do que relatar ou criar golpes de trama, quero entender como e por que estar no mundo, fundar mundos possíveis e dialogar com outros seres, sejam eles ficcionais ou não.” Quem acompanhou conosco a leitura de O Amor dos Homens Avulsos enxerga o romance nessa definição. Não poderia ser diferente, já que quem a disse foi o escritor Victor Heringer, em entrevista ao Achados & Lidos.

Heringer ainda afirmou que prefere incorporar os personagens a seu texto, em vez de transpor sua vida para o papel, “até porque não sou tão interessante assim”, diz ele em tom modesto.

Formado em Letras, com mestrado em Teoria Literária, o escritor compartilhou também seus autores preferidos e ainda contou que está trabalhando em um novo livro.

Confira abaixo a íntegra da entrevista:

Achados & Lidos: Em O Amor dos Homens Avulsos, temos fatos muito fortes e marcantes, mas são as emoções, e não as ações, que dão ritmo à narrativa. Qual o grande desafio de desenvolver uma prosa pautada pelo sentimento, pela subjetividade humana?

Victor Heringer: Acho que se poderia dizer que O amor dos homens avulsos é, sim, pautado pela emoção, pois é um romance cuja espinha dorsal é o primeiro amor – o grande impacto inicial na vida da maioria das pessoas. Mas essa emoção não pode ser alienada dos fatos, nem do corpo que os processa, que vive e sente. Mais do que relatar ou criar golpes de trama, quero entender como e por que estar no mundo, fundar mundos possíveis e dialogar com outros seres, sejam eles ficcionais ou não.

Achados & Lidos: Durante todo romance, foi justamente essa sensibilidade do seu texto que nos chamou a atenção. Vários trechos mereceram mais de uma leitura, porque atrás de uma linguagem aparentemente simples, havia interpretações muito ricas. Você lê as críticas que fazem dos seus livros? Se sim, você encontra elementos nessas análises que sequer imaginou no seu processo de escrita? Qual o sentimento diante dessa multiplicidade da literatura?

Heringer: Leio algumas críticas, não muitas, e gosto sobretudo quando se propõem a pensar a partir do meu texto. Aí realmente surgem questões que eu sequer tinha imaginado, o que me deixa bastante feliz, porque significa que o livro é fértil o suficiente para instigar o pensamento do outro. É essa possibilidade o que me encanta na literatura, como escritor e como leitor.

Achados & Lidos: Memória é um tema caro a diversos autores. Especialmente na literatura latino-americana, temos representantes emblemáticos desse tipo de narrativa – Alan Pauls, Gabriel García Márquez e, claro, Machado de Assis, com a inventividade de um personagem como Brás Cubas, um defunto autor. O Amor dos Homens Avulsos trabalha a memória de uma forma bastante original também, em uma sequência intrincada, que, mais do que intercalar fase adulta e infância, mistura maturidade e inocência. Qual o objetivo em contrastar esses dois pontos de vista?

Heringer: Se lembro bem, foi o Machado quem escreveu que a memória é uma cidadela de traição. Não só porque esquecemos quase tudo o que nos acontece, mas porque deformamos nossas lembranças o tempo inteiro. A memória está sujeita a nossas flutuações de humor e opinião, o lugar em que estamos, os traumas etc. E é a partir dela que criamos nossa autoimagem. Num relato escrito, a coisa fica ainda mais complicada, porque ele está submetido aos caprichos da língua e da comunicação. Esse processo me interessa muito, e no romance a ideia era de fato contar a história de um ponto de vista não diria “maduro”, mas cansado, degradado pelo passar do tempo e pelos desgostos acumulados no protagonista.

Achados & Lidos: O conceito de empatia tem se destacado muito no cenário atual, seja na ficção ou na não-ficção. E a literatura parece desenvolver um papel central nessa urgência. Como escritor, você acredita nessa ideia?

Heringer: A definição usual de “empatia”, isto é, a capacidade de se colocar no lugar do outro, serve também para descrever um dos aspectos principais do trabalho do ficcionista. Nunca tive muita vontade de tentar transpor minha vida para o papel, até porque não sou tão interessante assim. Costumo dizer que procuro incorporar os personagens, as vozes dos textos e suas ideias – o contrário de “me expressar” por meio da escrita. Essa abertura radical de si é dolorosa, põe em xeque sua própria personalidade.

Mas não é preciso chegar até aí para ser empático, basta um pouco de prática, disposição e certa elegância para considerar pontos de vista diferentes. Imagino que a urgência de que vocês falaram passa por uma recusa de diálogo que observamos no dia a dia – ou na confusão entre diálogo e gritaria de surdos. E isso, claro, acaba sendo articulado também na literatura.

Achados & Lidos: Além do livro em formato tradicional, no papel, você tem uma produção extensa e bastante interessante com imagens, vídeos, poesia. A literatura também tende a ser cada vez mais produzida em uma multiplicidade de formatos?

Heringer: Explorar práticas diferentes sempre foi uma coisa natural para mim. Escrevo em busca de certa “alegria formal”, encontrar maneiras novas de dizer, conexões inusitadas entre elementos etc. Expandir o que faço para outros terrenos é quase inevitável.

O que acontece hoje, porém, é que estamos diante de um fenômeno revolucionário, a internet, que não só cria novas plataformas de publicação, mas está modificando nossa própria estrutura cognitiva, a forma como lemos e apreendemos o mundo. É um momento tão importante quanto a invenção da imprensa, muito rico – e as reações são parecidas. Quando dizem que a internet vai matar a literatura, o fantasma de Gutenberg dá uma risadinha: “Já conheço essa história”.

Achados & Lidos: Há uma nova geração na literatura nacional que tem produzido trabalhos de bastante destaque. Boa parte dela se formou no Sul do país, a partir de oficinas literárias, por exemplo. Você participou de alguma delas?

Heringer: Nunca participei de oficinas literárias, embora tenha tido bons professores na Faculdade de Letras. Me formei na UFRJ, onde também fiz mestrado em Teoria Literária, e essa experiência foi essencial para que eu começasse a formular minhas questões. Quando descobri a existência das oficinas, já estava mais velho, com preocupações muito específicas quanto ao que estava escrevendo. No início, errei muito sozinho, tive pouco contato com escritores contemporâneos, o que tem seu lado ruim. Errar junto me parece sedutor.

Achados & Lidos: Você está trabalhando em algum novo livro? Tem previsão de lançamento?

Heringer: Recentemente, fiz uma longa viagem pela América do Sul, pesquisando e fotografando para o novo romance. Ainda é cedo para saber quando será lançado, mas estou entusiasmado com o processo. Nunca tinha feito isso antes, sair ao encontro de um livro. Faz parte daquela alegria formal de que falei acima.  

Achados & Lidos: Quais são seus autores favoritos? O que você está lendo atualmente?

Heringer: Manuel Bandeira, Hilda Hilst, Italo Calvino, Donald Barthelme, Machado de Assis, W.G. Sebald, Witold Gombrowicz, Susan Howe, Valêncio Xavier, Lydia Davis… são alguns dos escritores a que eu sempre retorno, a lista é longa. Recentemente, li dois autores marcantes, o húngaro Antal Szerb e a estadunidense Lucia Berlin.

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