Depois de alguns meses de espera, enfim chegamos ao desfecho da série napolitana de Elena Ferrante, com a publicação de História da Menina Perdida. Depois de três livros centrados na infância, na adolescência e na juventude de Elena e Raffaella, ou Lenú e Lila, como já nos habituamos a chamá-las, o quarto volume da série alcança as duas na maturidade e, depois, na velhice.

O laço que as une continua a funcionar como uma espécie de força gravitacional, que as aproxima e as repele, a depender das condições externas. Elena tenta escapar dessa misteriosa atração jogando-se nos braços de seu amor de infância, Nino, como ela nos informa já na frase de abertura do livro.

A partir de outubro de 1976 até 1979, quando voltei a morar em Nápoles, evitei estabelecer uma relação estável com Lila. Mas não foi fácil. Ela procurou quase imediatamente entrar mais uma vez à força em minha vida, e eu a ignorei, a tolerei, a suportei.

Ao decidir viver seu relacionamento com Nino e se separar de Pietro e, ao mesmo tempo, continuar a escrever, publicar e viajar para divulgar sua obra, a equação entre família e individualidade perde o equilíbrio na vida de Lenú, que se vê diante de dilemas inexistentes para a geração anterior a sua, privada dessa liberdade de escolha. Era uma época em que escolha significava, necessariamente, renúncia. Como lhe diz certa vez sua insuportável sogra, a quem Lenú muitas vezes tentou imitar, é preciso “acertar os ponteiros com a realidade e estabelecer o que é renunciável e o que não é”.

A angústia que sentimos ao longo de toda a série napolitana – talvez por sua escancarada representação de uma realidade brutal, salpicada por uns poucos momentos de felicidade – em História da Menina Perdida é aguçada pela passagem do tempo.

O último livro da série compreende pouco mais de três décadas, o equivalente ao tempo passado nos três primeiros volumes. A passagem do tempo agora parece vir em ondas que golpeiam com mais ou menos força, em acontecimentos triviais que, somados, dão nova dimensão e profundidade ao encadeamento da vida. É assim que Lenú consegue ordenar sua história para recontá-la, ao relembrar os pontos de virada em que se percebe que uma decisão, um desaparecimento, uma visita fazem com que nada mais seja como antes.

De volta a Nápoles com as filhas, a relação com as meninas, embora afetuosa, será sempre algo distante, até porque as crianças se veem presas ao mesmo bairro do qual sua mãe lutou tanto para escapar. A verdade é que Lenú, mesmo desbravando o mundo, continuou presa a sua relação quase umbilical com Lila e, sobretudo, com o bairro que a moldou. A reaproximação com a melhor amiga, algo difícil no começo, contribuirá para que suas duas filhas, Dede e Elsa, aceitem com mais facilidade o bairro e fazem Elena refletir as brutalidades a que elas e as outras meninas do bairro foram submetidas na infância.

Que desperdício seria, pensei, estragar nossa história dando espaço excessivo aos maus sentimentos; os maus sentimentos são inevitáveis, mas o essencial é represa-los. Me reaproximei de Lila com a desculpa de que as meninas queriam encontrá-la.

Esse autoconhecimento que advém da maturidade permite que Elena também tente se reaproximar da mãe, especialmente quando ela fica doente e as duas são obrigadas  a enfrentar uma intimidade que nunca tiveram. Assistir à decrepitude da mãe, acometida por um câncer, faz com que Lenú reflita:

Senti pela primeira vez o choque do tempo, a força que estava me impelindo para os quarenta, a velocidade com que a vida se consumava, a concretude da exposição à morte: se está acontecendo com ela, pensei, não há saída, vai acontecer comigo também.

A #ferrantefever talvez tenha sido um dos maiores e mais importantes fenômenos literários dos últimos anos. Muitos leitores pouco assíduos enfrentaram com devoção as mais de 1600 páginas da série, mas ao contrário de outras sagas populares, a escrita de Ferrante é densa, amarga.

Como escreveu Joshua Rothman para a revista The New Yorker, as personagens “fascinam pelas fortes emoções, em especial aquelas que parecem inexplicáveis à luz do dia”. Esse talvez seja o ponto nevrálgico do apelo da série. Muito do que está dito na relação de Lenú com Lila, e delas com o mundo externo, de seus relacionamentos amorosos à maternidade, é o não falado no universo feminino.

A competição velada entre as duas amigas, a conciliação necessária entre maternidade e carreira, entre desejo e amor, entre casamento e trabalho. A identificação é espontânea, imediata e, mais do que  isso, desperta empatia. As personagens são extremamente reais, francas, vulneráveis, expõem à luz do dia dramas e pensamentos  que raras vezes temos a coragem de articular em voz alta. Ainda que perdidas ao navegar em um bairro hostil, em que as tragédias se acumulam, elas conseguem manter a coesão, a capacidade de sobrevivência, que nos faz questionar e refletir sobre os próprios percalços que enfrentamos.

Parte do apelo talvez também possa ser explicado por sua ótica essencialmente feminina. Na série napolitana, e em especial em História da Menina Perdida, os homens estão presentes, mas são secundários, inexpressivos, sempre  fugindo das obrigações que para as mulheres têm quase força de lei.

É a vida miserável de quem não teve as oportunidades que, cada uma a seu modo, Lila e Lenu conseguem superar que nos fazem refletir sobre a desigualdade de um sistema que deixa a grande maioria sem saída.

Difícil não enxergar uma ponta do Brasil no contexto italiano reproduzido no livro, como na cena em que Nino questiona a ideia de que seja necessário recorrer a autoridades até mesmo para se conseguir um leito no hospital. O panorama que História da Menina Perdida faz é de uma Itália cujo sistema político, em reconstrução após a guerra, está em frangalhos, com espaço cada vez maior dado a aventureiros.

Como esperávamos desde o primeiro livro, que começa com o sumiço sem rastros da Lila, a série napolitana se fecha com as perdas. Elas são muitas. Vêm da morte, da violência, das decepções, do abandono, de traições. A menina perdida pode representar uma história específica, angustiante, mas é também um retrato de uma geração que procurou encontrar seu lugar no mundo ao tentar fazer diferente de seus pais, nem sempre com sucesso. Lila preferiu se perder de todos. Lenu encontrou um modo de contar essa história e resgatar as fraturas que compõem nossa existência. Entre os dois polos, vemos no espelho em que a amizade das duas é refletido uma história potente e, ao mesmo tempo, miserável.

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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