[Nossa Senhora do Nilo] Semana #4

Se no trecho anterior vislumbramos a necessidade de apagar a história para impor a narrativa dos colonizadores, nas últimas páginas mergulhamos em uma onírica tentativa de reconstrução de um passado dominado por faraós e deuses. Além disso, enfrentamos a dura realidade de ser mulher em qualquer lugar do mundo, nas narrativas em pílula que, gota a gota, nos ajudam a compor o panorama do dia a dia no liceu. Para a próxima semana, vamos até a página 140.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A história da África, ao contrário do que prega a professora Lydwine, obviamente não começou com a colonização. No trecho que acabamos de ler de Nossa Senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga, mergulhamos em uma onírica tentativa de reconstituir um passado em que reinavam faraós negros.

A história começa com uma confissão de Veronica para Virginia, duas alunas do liceu. Mais uma vez, Scholastique busca a oralidade para salpicar as falas de frases que, de tão  recorrentes, passam a ser incorporadas como verdades pela população local. O tempo todo, em suas histórias, os tutsis estão apontando comportamentos característicos que lhe foram infligidos como autodefesa, construindo assim uma diferenciação que torna propícia a dominação pelos hutus:

-Veronica, você sabe que nós, os tutsis, sabemos guardar bem um segredo Aprendemos desde cedo a ficar calados. Se quisermos ficar vivos, não podemos abrir a boca. Você sabe o que dizem nossos pais: “Seu inimigo  é a sua língua”.

Veronica então passa a relatar o encontro que teve com um fazendeiro local, o sr. de Fonteinaille, um homem branco aficionado pela história perdida dos tutsis. A reconstrução mitológica que o sr. de Fonteinaille tenta fazer do passado é interessante justamente porque, mais uma vez, um branco busca dominar uma narrativa que deveria ser construída pelos povos nativos da região.

O sr. de Fontenaille, que usa chapéu de sáfari, anda de jeep e mantém no jardim de casa um templo egípcio reconstruído, pretende resgatar a grandiosidade dos deuses de uma outra época:

Em seu longo êxodo, explicou ele, os tutsis tinham perdido a Memória. Eles conservaram as vacas, a postura nobre, a beleza de suas filhas, mas perderam a Memória, não sabiam mais de onde vinham, nem quem era. Ele, Fontenaille, sabia de onde vinham os tutsis e quem eram eles. A sua descoberta era uma longa história, era a história de sua vida, do seu destino, e ele não tinha medo de contar.

Em sua visão onírica de um período em que haviam deusas, rainhas, faraós negros, o sr. de Fonteinaille persegue meninas tutsis que possam servir de referência para suas pinturas, tentando mais uma vez roubar uma imagem que não é sua. Quem faz essa análise é a própria Virginia, depois de um episódio em que a amiga é encontrada inconsciente:

Você sabe o que aconteceu conosco, os tutsis, quando aceitamos interpretar o papel que os brancos nos atribuíram. Foi a minha avó quem contou essa história: quando os brancos chegaram, acharam que estávamos vestidos como selvagens. Eles venderam às mulheres, às mulheres dos chefes, pérolas de vidro, muitas pérolas e tecidos brancos. Eles mostraram como se enrolar nos tecidos e como fazer penteados. Eles os transformaram nos etíopes e egípcios que eles tinham vindo aqui  buscar. Agora tinham suas provas. E vestiram os tutsis de acordo com seus próprios delírios.

Aqui, quem conta a história é a avó, em mais uma das marcas da história passada de geração em geração, de forma oral, muito presentes na narrativa de Scholastique, como já comentamos antes. Na história seguinte, porém, o assunto é um tabu, quase não falado entre as famílias: menstruação.

A iniciação. O medo. A vergonha. Para Modesta, aconteceu em aula. Durante o curso de inglês. (…). “Chegou a hora, Modesta”, disse a irmã Gerda, “eu não esperava que acontecesse tão cedo. Agora você se tornou uma mocinha. Você vai ver como é sofrido: foi Deus que quis assim por causa do pecado de Eva, porta do diabo, a mãe de todas nós. As mulheres são feitas para sofrer”.

E assim os valores da cultura cristã eram impostos e passados para as meninas do liceu, sem que houvesse outra fonte de informação que pudesse tirar o peso moral de um acontecimento biológico. Mesmo os rituais que envolviam esse acontecimento, como as tiras de pano que precisavam ser lavadas em local afastado, impregnado de mistério, reforçavam o segredo e a vergonha que se tentava impregnar nas meninas.

Virginia, a amiga a quem Modesta recorre para fazer confidências (e que parece ser a mais madura do liceu), chega a se questionar se isso era algo que já era interpretado dessa forma antes dos europeus chegarem, mas depois recorda que, no campo, uma amiga era confinada ao quarto nos dias em que ficava menstruada. A maldição de ser mulher é praticamente acultural.

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1 Comentário

  1. O comentário de vocês é sempre perfeito: a forma como a repressão cristã à sexualidade feminina é imposta às moças é sem dúvida comparada à própria repressão da cultura tutsi. Gostaria também de comentar outro aspecto, a fala de Immaculée, demonstrando total consciência do papel daquela escola (p.139):

    “Antes de vir, já éramos boas mercadorias, afinal somos quase todas filhas de gente rica e poderos, filha de pais que saberão nos negociar ao preço mais alto, um diploma só vai aumentar nosso valor.”

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