[Nossa Senhora do Nilo] Semana #8

Como o ódio se espalha e se impregna em uma sociedade? No último capítulo de Nossa Senhora do Nilo, Scholastique Mukasonga relata uma história que nos lembra a velha máxima da propaganda nazista: uma mentira dita mil vezes torna-se realidade. Na próxima semana, encerramos  mais um Clube do Livro do Achados e Lidos, com a leitura do último capítulo de Nossa Senhora do Nilo.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

As tensões sociais e disseminação de ódio que podem levar uma sociedade a entrar em guerra civil, virtualmente eliminando toda uma população, parecem inconcebíveis, à distância. Em Nossa Senhora do Nilo, no microcosmo do liceu, contudo, Scholastique Mukasonga revela, por meio de um episódio aparentemente banal, qual era o contexto social que possibilitou, 30 anos mais tarde, o genocídio de mais de 800 mil tutsis, no início da década de 90.

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Em O Nariz da Virgem, temos o relato mais cruel do livro até agora, impregnado de intolerância, maldade e mentiras. Gloriosa, a filha do chefe de partido que em praticamente todos os capítulos destilou seu veneno contra os tutsis, resolve dessa vez mirar na santa que ficava às margens do rio Nilo. Segundo ela argumenta, a Nossa Senhora teria um nariz de tutsi, mais fino. Modesta, que participa da conversa, responde com uma obviedade:

-Eles pegaram uma Virgem que era branca e a pintaram de preto, ou seja, eles mantiveram o nariz  dos brancos.

A argumentação, contudo, não abala os planos “da terrível Gloriosa, pesada de corpo e alma, incorporando os preconceitos dos novos donos do poder”, como bem definiu Marcos Alvito, que acompanhou  a leitura conosco aqui no blog.

Gloriosa decide que vai quebrar o nariz da Virgem antes da peregrinação e substituí-lo por um “verdadeiro nariz de ruandesa, um nariz do povo majoritário”. Como em muitas formas de discriminação, opera aqui também a diferenciação por aspectos físicos, criando uma espécie de estigma que busca marginalizar uma parte da sociedade.

Depois da visita à santa, no entanto, Gloriosa decide ir além. Enlameada e amassada por causa da trilha, ela decide inventar que foi vítima de um ataque de bandidos, que tentaram violá-la. O ataque teria partido dos inyenzis, a palavra em Kinyarwanda que significa “barata” e era usada pejorativamente para designar os tutsis, especialmente aqueles que participaram da oposição à tomada de poder pelos hutus. Modesta, que forçadamente a ajudou a quebrar o nariz da Virgem, tenta fazê-la mudar de ideia, mas sua oposição tímida  não surte nenhum efeito. Sem armas para resistir à posição de autoridade da colega, Modesta é conivente com os relatos que ela faz, mesmo sabendo que tudo não passa de encenação e mentira. Mais uma vez, Scholastique escancara uma verdade cruel: os tutsis assistiram à difamação e alheamento de seu povo de forma cada vez mais passiva, fazendo parte do enredo que acabaria por engolir a todos.

A teia de mentiras e calúnias tecida por Gloriosa arrasta mais e mais pessoas, com a mobilização do prefeito, de policiais locais, dos militares, do tenente, da madre superiora do liceu, das alunas… A cada vez que ela relata sua  história, maior é a mentira que ela conta, relembrando a máxima da propaganda nazista: uma mentira contada mil vezes acaba por tornar-se realidade.

O discurso impregnado de ódio de Gloriosa se espalha pela comunidade local. Depois de vasculharem casas, invadirem terrenos, quebrarem jarros e interrogar até as crianças, o tenente afirma:

“Bom, duas jovens corajosas conseguiram fazer com que eles fugissem” – disse o tenente. – “É uma pena que nenhum deles tenha sido pego, mas foi uma boa operação: nunca é demais lembrar aos tutsis que, aqui em Ruanda, eles são apenas baratas, inyenzis”.

Camuflando seu discurso de coragem e política, Gloriosa provoca uma verdadeira perseguição aos tutsis da região. Do cotidiano aparentemente banal, Mukasonga constrói uma anedota que é um prenúncio do crime de genocídio que assolaria Ruanda décadas mais tarde – ao seu modo e em escala bem menor, o que Gloriosa propõe é uma limpeza étnica, a “des-tutsização”.

No final, Gloriosa faz um discurso inflamado, baseado em inverdades, e diz, em segredo para amiga: “está vendo (…) aqui eu já sou ministra”. A associação de um cargo público de liderança com a capacidade de espalhar mentiras não é por acaso. Políticos são porta-vozes de uma nação e o que dizem tem muito poder, para o bem e para o mal. As relações diplomáticas do mundo, por exemplo, tremem a cada tweet do presidente dos Estados Unidos.   

Um dos argumentos que Gloriosa usa para convencer Modesta a ajudá-la é a de que seu ataque era um “ato militante”, posicionando-se no limiar perigoso da liberdade de expressão e do crime de racismo. Mais frequentemente do que imaginamos, essa dualidade tem consequências desastrosas, porque esconde o ódio e a agressão sob o manto quase sagrado da opinião.

Em Ruanda, em 1994, 800 mil tutsis foram mortos em 100 dias. O cenário assombroso levanta a pergunta: para onde o mundo olhava que não viu isso acontecer? Ou melhor: por que o mundo viu isso acontecer e se calou? Teriam eles escolhido acreditar que tamanha violência era um ato militante, uma questão interna de um país?

Em 2014, 20 anos após o genocídio, um diplomata da ONU, organização duramente criticada por sua omissão no caso de Ruanda, se desculpou publicamente pela grave falha:

Keating lembrou que em 1994 Nova Zelândia, Nigéria, República Tcheca e Espanha, apoiados por Argentina e Djibuti, insistiram na condenação do genocídio de Ruanda e pediram um reforço na missão da ONU, mas a maioria dos membros permanentes com poder de veto rejeitaram o pedido. Entre eles estavam EUA e França.

Ele lembrou que o secretariado da ONU ocultou “um conselho fundamental” que fornecia avisos antecipados sobre o provável genocídio, e disse que um relatório da Comissão de Direitos Humanos sobre a possibilidade do genocídio nunca foi trazido ao conselho.

Como bem nos lembra Mukasonga em sua obra, o ódio não floresce de um dia para o outro. São pequenas atitudes e discursos que preparam o terreno, jogam a semente e cultivam esse sentimento, de forma que sua raiz se torne tão forte e profunda que é quase impossível derrubá-lo.

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3 Comentários

  1. Na minha opinião, esse capítulo é um dos mais representativos do livro e também o mais difícil de digerir. Como vocês bem pontuaram, é “impregnado de intolerância, maldade e mentiras” e, infelizmente, consigo fazer um paralelo claro com a realidade que vivemos hoje. Discursos vazios, cheios de preconceito e intolerância, a favor da “moral” e do “progresso”.

    Mukasonga narra a história de meninas em um liceu para contar um pouco de Ruanda, mas acredito que ela tenha conseguido ir além. Percebe-se que o ódio surge dessa maneira em diversos lugares do mundo, não importando a língua ou a cultura – “Nossa Senhora do Nilo” é essencial e extremamente contemporâneo. Obrigada pela dica, meninas!

  2. Oi meninas, acabei terminando a leitura antes de vocês, mesmo depois de me atrasar, rs!
    Este livro é tão comovente que fui passando as páginas sem parar.
    Quero agradecer mais uma vez pelo presente e pela oportunidade ter ler essa história. Compartilhei meu relato em uma resenha no meu blog: http://gatoqueflutua.com.br/2017/10/11/o-gato-leu-nossa-senhora-do-nilo/

    Abração! <3

  3. Mariane e Tainara, mais uma vez vocês fizeram um comentário sensível e inteligente. A autora consegue realizar o sonho do romancista: ser ao mesmo tempo local e universal. Se por um lado ela conta uma história bem delimitada no tempo e local, remontando ao massacre dos tutsis e a sua própria tragédia pessoal, por outro, como vocês bem enfatizaram, decerto não seria impossível estabelecer paralelos com outras culturas e outros momentos históricos. Em seu Raça e História, Lévi-Strauss lembra que o etnocentrismo, a exclusão do “outro” da sua noção de humanidade, é uma prática extremamente difundida. A este respeito, conta uma história que ele chama ao mesmo tempo de barroca e trágica: “enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para pesquisar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes últimos dedicavam-se a imergir brancos prisioneiros, a fim de verificar, após uma vigília prolongada, se seu cadáver estava ou não sujeito à putrefação.” O uso do símbolo religioso também é frequente nestes casos. Basta lembrar que nestas terras tupiniquins já tivemos uma santa chutada ao vivo na televisão. Tudo isso mostra o enorme valor do livro de Mukasonga, que sempre nos faz pensar. Obrigado por trazerem este debate.

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