[Divã] Edições primorosas

Este texto é uma confissão que apenas os apaixonados por livros – e não só por literatura – irão entender.

Comecemos por um dos meus favoritos: Dom Casmurro, de Machado de Assis, da editora Carambaia. Por que pagar quase 100 reais em uma obra que é domínio público e que tem dezenas de outras edições muito mais baratas? Porque esse clássico merece. Porque esse gênio brasileiro merece. Porque a edição é quase uma obra de arte. Todas as alternativas anteriores.

Exemplar em capa dura, envolto em uma luva e numerado. Projeto gráfico de Tereza Bettinardi, com fotografias do Rio de Janeiro da época de Machado de Assis, sobre as quais o artista plástico Carlos Issa fez intervenções, utilizando técnicas como letraset, tinta, fita adesiva. O formato remonta à edição original de Dom Casmurro, de 1899, publicado pela Livraria Garnier, repetindo suas dimensões. Há também uma referência à antiga prática de decoração de livros, na qual imagens ficam dissimuladas na lateral do volume, revelando-se ao leitor à medida que ele manuseia as páginas. A perfeita harmonia entre forma e conteúdo: esse é, para mim, o diferencial que justifica o preço de edições de livros luxuosas.

O clássico russo Guerra e Paz, de Liev Tolstói, editado pela saudosa Cosac Naify, é mais um ótimo exemplo. Impresso em papel-bíblia, para equilibrar peso, legibilidade e flexibilidade, a obra foi dividida em dois tomos que se acomodam em uma caixa transparente. No projeto gráfico de Elaine Ramos, ilustrações de soldados nas cores preta e azul invadem as páginas pela transparência do papel, mimetizando o campo de batalha onde se enfrentaram os exércitos russo e francês. Nas páginas de abertura das partes, a transparência é explorada mais uma vez, funcionando como um espelho, que reflete os títulos grafados ao contrário, em uma referência gráfica às letras do alfabeto cirílico. A edição ainda conta com cinco mapas, uma lista com informações sobre os personagens e os fatos históricos citados no romance, além de sugestões de leitura. Um projeto gráfico excepcional é capaz de proporcionar uma experiência literária completa, que faz o leitor se sentir no tempo e no espaço que a obra ocupa.

E não são apenas os calhamaços que merecem todo esse capricho. Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville, é um livro de menos de 100 páginas que ganhou uma edição primorosa da Ubu. A história é narrada pelo sócio de um escritório de advocacia de Nova York que tenta decifrar a personalidade misteriosa de Bartleby, um funcionário que se recusa a realizar qualquer tarefa dizendo a célebre frase “Acho melhor não”. Esse bordão permeia toda a narrativa e deixa todos, inclusive o narrador, estupefatos. Essa obra-prima da literatura do absurdo, que tem em Camus e Kafka grandes representantes, desnuda a existência e as relações humanas a partir de uma situação cotidiana e aparentemente banal.

O projeto gráfico da Ubu, também de autoria de Elaine Ramos, concretiza a essência da obra de Melville já no momento de abrir o livro. Costurado dos dois lados, é preciso puxar as linhas para acessar as páginas. Em seguida, é necessário rasgar as bordas das páginas para encontrar o texto. O livro é tão impenetrável quanto a personalidade de Bartleby e, a todo momento, a iminência de um passo em falso, que pode arruinar a folha, traz à mente a frase “Acho melhor não”. Para aqueles que, como eu, são extremamente cuidadosos com livros, essa experiência é um tanto aterradora. Ela me deixou tão perplexa quanto a narrativa de Melville, rs.

Literatura é arte, e fazê-la dialogar com outras formas de arte é sempre rico. Livros não precisam, ou melhor, não devem ser apenas impressões. Em uma era em que o massivo esmaga o individual e o digital sobrepõe o físico, a saída pode ser a beleza do artesanal. Como bem escreveu Valter Hugo Mãe, no romance Homens Imprudentemente Poéticos:

O artesão apenas educava os materiais para uma vocação que eles detinham por natureza (…). O artesão era um cúmplice da natureza, um certo intérprete. Como se avivasse a memória antiga à coisa inerte. O gesto precisava ser único, sem repetição, para que a obra comparecesse na espontaneidade possível.

Edições de livros primorosas são, em sua singularidade, cúmplices da literatura. São intérpretes que guiam o leitor para além das palavras impressas.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
Mariane Domingos

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2 Comentários

  1. Amei as escolhas. Poderia incluir Decameron – edição da Cosac Naify. Se não me engano, ganhou Jabuti pelo projeto gráfico que é maravilhoso.

    • Obrigada pelo comentário, Ana! Verdade, bem lembrado: faltou Decameron! Dava para incluir quase a Cosac Naify inteira nesse post, haha. Tem uma edição deles que amo também
      e que não incluí – Zazie do Metrô, do Raymond Queneau. É lindíssima! Se não me engano, comemorou os 50 anos da obra. É toda em folhas duplas, com transparências que revelam grafismos (impressões de cartazes franceses) entre as páginas. Um primor.

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