[Resenha] As Perguntas

Alina é uma jovem de quase trinta anos que leva uma vida absolutamente pacata em uma São Paulo cada vez mais caótica. Até que uma investigação policial a leva a questionar algumas certezas sobre vida, morte e religião. Em As Perguntas, novo livro de Antônio Xerxenesky, lançado pela Companhia das Letras neste mês, há pouco espaço para respostas.

O romance, bastante intrigante, une em uma mesma narrativa questionamentos sobre o pesadelo cotidiano e uma história de terror que nos faz colocar em dúvida nossas crenças mais arraigadas. O autor, selecionado como um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros pela revista literária Granta, volta a um tema que já havia sido explorado em seu livro anterior, F., o ocultismo.

A história se passa em um único dia da vida de Alina, com algumas pequenas pinceladas sobre  momentos passados que contextualizam a história. As primeiras páginas do livro são enigmáticas. Alina relembra os pesadelos em que acordava ainda cercada por sombras. Seus pais, ferrenhos defensores do pragmatismo da ciência, explicavam que era um “truque” do cérebro, e Alina acabou convencida.

Essa memória passa a fazer mais sentido quando ela recebe uma ligação de uma delegada sobre um estranho caso de um desaparecido em São Paulo, encontrado em completo estado de choque. A personagem, que é formada em História das Religiões e se interessa por ocultismo, é questionada sobre seu  conhecimento sobre uma suposta seita chamada Ordem Metafisica Experimental. A partir daí, uma troca de e-mails levará Alina a viver uma noite em que a fronteira entre o real e a fantasia passa a ser bastante tênue (não vamos dar spoilers para não estragar a surpresa do livro!)

Enquanto a narrativa se desenrola, Xerxenesky também compõem o quadro psicológico da personagem, que mostra claros sinais de depressão. Nascida na década de 80, Alina é um claro retrato da geração que chegou aos 30 anos aprisionada em cubículos de escritórios em troca de um salário que mal permite pagar as contas, céticos em relação aos valores de seus pais, mas sem encontrar o que colocar no lugar. A vida apática de Alina envolve um esforço diário para levantar da cama, café da manhã às pressas, um emprego chato, relações superficiais.

Embora tenha bastante clara a visão de seu fracasso, Alina não consegue sair dessa armadilha. A cidade parece engolfá-la cada vez mais para seus descaminhos e cantos obscuros, em uma espécie de pesadelo mais intenso do que aqueles que recheavam seu mundo de sombras ao acordar quando pequena. Ao descrever uma noite alucinada pelas ruas de São Paulo, que parece não acabar nunca, Xerxenesky na verdade propõe uma questão filosófica bem mais profunda, sobre a dificuldade de lidar com perdas para quem prefere se colocar fora do sistema de crenças tradicional.

Ao se afastar das religiões “tradicionais”, que trazem conforto com a promessa de permanência da alma, Alina se vê num labirinto em que seu ceticismo e sarcasmo, construídos com tanto rigor ao longo de anos, lhe são de pouca serventia quando  ela se depara com uma perda importante e, principalmente, com uma situação que beira o fantástico.

Na linha dos romances bastante contemporâneos que têm sido publicados por autores brasileiros recentemente, como  Meia-Noite e Vinte, de Daniel Galera, e o Tribunal da Quinta-feira, de Michel Laub, As Perguntas também ecoa a fragmentação da vida moderna, cada vez mais acelerada e, ao  mesmo tempo, vazia. Só que com uma boa pitada de horror no meio. Boa leitura para outubro!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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1 Comentário

  1. Amei a resenha, Tatá!

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