“Minha mãe era uma contadora de histórias reconhecida. Ela não sabia nem ler nem escrever e desconhecia o francês. Mas se eu tenho qualquer talento para escrita, é a ela que eu devo essa habilidade. Mais do que o título de escritora, reivindicarei o de contadora de histórias.”

Todos nós que acompanhamos a leitura de Nossa Senhora do Nilo não hesitamos em dar esse título a Scholastique Mukasonga. A desenvoltura para narrar uma grande história a partir de curtos episódios e personagens emblemáticos é marcante em sua obra.

Por essas qualidades, sua obra tem recebido grande reconhecimento. O primeiro título de Scholastique Mukasonga, Inyenzi ou les Cafards, obteve o reconhecimento da crítica e alcançou grande público na França. O segundo, A Mulher de Pés Descalços, levou o prêmio Seligmann 2008 “contra o racismo, a injustiça e a intolerância”. O terceiro, L’Iguifou, foi coroado pelo prêmio Renaissance, e o quarto, Nossa Senhora do Nilo, pelo prêmio Renaudot 2012.

Nascida em Ruanda, a escritora vive hoje na região da Baixa Normandia, na França. Comunicamo-nos com ela por e-mail e fomos extremamente bem acolhidas. Desde o primeiro contato, a autora se mostrou saudosa do sol do Brasil e dos brasileiros. A todo momento, ressaltou o quanto se sentia grata pelo tempo que dedicamos à leitura atenta de Nossa Senhora do Nilo e se mostrou interessada em conhecer as opiniões de seus leitores.

Estamos muito felizes de encerrar nosso oitavo Clube do Livro com uma participação tão especial!

Confiram, abaixo, a entrevista na íntegra.

Achados & Lidos: O que mais nos impressionou em Nossa Senhora do Nilo foi a sua habilidade para contar histórias. A grande narrativa se forma a partir do conjunto de pequenas histórias, com muita sutileza. Em A Mulher de Pés Descalços, você comenta que sua mãe era uma grande contadora de histórias. Ouvi-la era um momento especial em família. A oralidade que marca sua literatura é uma influência e, ao mesmo tempo, uma homenagem à sua mãe? Você acredita que a arte de contar histórias é a base da literatura?

Scholastique Mukasonga: Os povos que, como os ruandeses, não conheciam a escrita, não tinham uma verdadeira literatura. Diferentes gêneros (poesias de guerra, pastorais, narrativas históricas etc.) eram praticados na corte real. Os contos populares reservavam-se, sobretudo, às mulheres. Eu fiz uma espécie de patchwork de temas no capítulo IX de A Mulher de Pés Descalços [O País dos Contos].

Minha mãe era uma contadora de histórias reconhecida. Ela não sabia nem ler nem escrever e desconhecia o francês. Mas se eu tenho qualquer talento de escritora, é a ela que eu devo essa habilidade. Mais do que o título de escritora, reivindicarei o de contadora de histórias.

Achados & Lidos: O que acontecia no liceu Nossa Senhora do Nilo era apenas uma amostra do que se passava em Ruanda na época. Por que você escolheu o liceu para ambientar essa narrativa, com personagens tão jovens?

Mukasonga: Se o romance não fosse autobiográfico, o liceu Nossa Senhora do Nilo jamais teria existido. Eu me servi do liceu que frequentei, Notre-Dame de Citeaux, em Kigali. O liceu é um microcosmo da Ruanda dos anos 70, onde se desenhavam as premissas do genocídio de 1994. Ele me permitiu conservar a unidade de lugar (o liceu) e a unidade de tempo (um ano escolar correspondente à longa temporada de chuvas).

Achados & Lidos: Assim como em A Mulher de Pés Descalços, em que as mulheres têm um papel central na narrativa, em Nossa Senhora do Nilo, a questão feminina também é bastante presente. O episódio da primeira menstruação, todas nós, leitoras, sentimos o peso que carregamos por sermos mulheres. Você acredita que as escritoras têm um papel importante em relatar essa situação e contribuir para mudá-la?

Mukasonga: Claro, é papel das escritoras contribuir para a mudança da condição das mulheres. Acabo de voltar do Marrocos e, no próximo mês, vou à Nigéria, onde grandes festivais estão sendo organizados sobre esse tema. Eu acho que, com as notícias recentes de Hollywood, o tema é bastante atual!

Achados & Lidos: A colonização e seus efeitos nocivos à identidade de um povo estão bastante presentes em Nossa Senhora do Nilo. O Brasil também foi, durante séculos, uma colônia de Portugal. Lendo seu livro, nos identificamos com várias passagens em que era clara a violência contra a cultura local. Você acha que há um caminho de volta para a identidade perdida em anos de colonização?

Mukasonga: As crenças tradicionais foram particularmente erradicadas pelos missionários. Ser chamado de pagão era o pior insulto. Nossa história foi falsificada, fazendo dos Tutsi uma raça meio branca, os Hamites. Cabe às gerações atuais reencontrar suas raízes.

Achados & Lidos: Se, de um lado, observamos a forte influência católica sobre a população ruandesa, em Nossa Senhora do Nilo também conhecemos mais da cultura tradicional local. As crenças no poder do misticismo, de reis e rainhas antigos, em feitiçaria, ainda tinham forte peso para as alunas. Esse sincretismo religioso permanece até hoje?

Mukasonga: A conversão ao cristianismo nos anos 1930 foi massiva, seguindo a do rei e a dos principais chefes. Era necessário um certificado de batismo para frequentar a escola. Mas minha mãe invocava, dependendo do caso ou ao mesmo tempo, a Santa Virgem ou Ryangombe, o chefe dos espíritos. No meu último romance, Coeur Tambour [Coração de Tambor, ainda sem tradução], fiz uma homenagem à deusa mãe, Nyabingi, que atravessou o Atlântico e foi adotada pelos rastas jamaicanos.

Achados & Lidos: Gloriosa é a voz da intolerância. O discurso que ela transmite é um eco do que ela sempre ouviu em casa, principalmente do pai. Qual a mensagem que você quis passar através desse personagem forte?

Mukasonga: Gloriosa representa o fanatismo racial erguido como uma doutrina política. Gloriosa é a síntese de várias pessoas reais que eu (infelizmente!) encontrei.

Achados & Lidos: Ao contrário de Gloriosa, Virginia era a voz que transmitia paz no liceu, sempre conciliadora, mantenedora de segredos e confissões. Ela é também a personagem que guarda certo otimismo até o fim, mesmo quando percebemos que a situação da etnia Tutsi está se agravando. Ela representa certa confiança no futuro, necessária mesmo nos períodos mais sombrios?

Mukasonga: O genocídio dos Tutsis não destruiu Ruanda. Uma nova Ruanda se reconstrói. Virginia é o anúncio dessa reconstrução.

Achados & Lidos: Percebemos, no Brasil, um crescente interesse pela literatura africana escrita por mulheres, com excelente acolhida não apenas de sua obra, mas de outras autoras também. Há mais espaço para escritoras no mercado hoje?

Mukasonga: A literatura africana tem muita importância na França onde a francofonia é considerada como um patrimônio a ser preservado. Eu ganhei o prêmio Renaudot em 2012. Em 2016, foi uma marroquina que levou o prêmio Goncourt. Atualmente, a literatura africana e feminina ocupa um lugar importante na literatura francesa.

Achados & Lidos: Durante nove semanas, discutimos, capítulo a capítulo, o livro Nossa Senhora do Nilo. A leitura foi formidável e confessamos que estamos um pouco tristes de nos despedirmos do liceu e seus personagens. Você poderia deixar uma mensagem aos leitores brasileiros, especialmente aqueles que acompanharam conosco a leitura de Nossa Senhora do Nilo?

Scholastique Mukasonga: Estou muito emocionada pela dedicação de todos vocês à leitura de Nossa Senhora do Nilo. Eu guardo uma lembrança inesquecível do entusiasmo dos leitores em Paraty e da tarde que passei em uma favela no Rio. Eu espero que minha corajosa editora brasileira possa continuar a traduzir e publicar meus livros e de vários outros autores negros. Mal posso esperar para voltar ao Brasil e encontrar o clube de leitura do Achados & Lidos.


Lisez en français:

“Ma mère était une conteuse réputée. Elle ne savait ni lire ni écrire et ignorait le français. Mais si j’ai quelque talent d’écrivaine, c’est bien à elle que je le dois. Plutôt que le titre d’écrivaine, je revendiquerai celui de conteuse.”

Tous ceux qui ont suivi la lecture de Notre-Dame du Nil sont d’accord et n’hesitent pas à donner ce titre à Scholastique Mukasonga. Son aptitude à raconter une belle histoire à travers des épisodes courts et de personnages emblématiques est remarquable.

Son premier ouvrage, Inyenzi ou les Cafards, a obtenu la reconnaissance de la critique et a touché un large public ; le deuxième, La Femme Aux Pieds Nus, a remporté le prix Seligmann 2008 « contre le racisme, l’injustice et l’intolérance », le troisième, L’Iguifou, a été couronné par le prix Renaissance de la nouvelle 2011, et le quatrième, Notre-Dame du Nil, par le prix Renaudot 2012.

Né au Rwanda, l’écrivain vit dans la région de Basse-Normandie, en France. Nous avons échangé avec elle par e-mail et nous avons été très bien accueillies. Dès le premier contact, l’écrivain a manifesté sa nostalgie du soleil Brésilien et surtout de l’accueil chaleureux qu’elle y a eu. Elle a souligné qu’elle était vraiment émue de l’attention que nous avons portée à son livre et qu’elle serait très intéressée de connaître les réflexions inspirées par Notre-Dame du Nil.

Nous sommes très ravies de conclure notre huitième club de lecture avec cette participation tellement spéciale !

Voici l’entrevue complète :

Achados & Lidos : À propos de la lecture de Notre-Dame du Nil, ce qui nous a impressionné le plus a été votre aptitude à raconter des histoires. Le grand récit est formé par l’ensemble de petites histoires avec une subtilité admirable. Dans La Femme Aux Pieds Nus, vous mentionnez que votre mère était une grande raconteuse d’histoires. Vous expliquez que l’écouter faisait partie des moments spéciaux passés en famille. Considérez-vous que l’oralité qui démarque votre littérature est une influence et, en même temps, un hommage à votre mère ?Croyez-vous que l’art de raconter une histoire est la base de la littérature ?

Scholastique Mukasonga : Les peuples qui, comme les Rwandais ne connaissaient pas l’écriture, n’en possédait pas moins une véritable littérature. Différents genres (poésie guerrières, pastorales, récits historiques, etc.) étaient pratiquées à la cour royale.

Les contes populaires étaient plutôt l’apanage des femmes. J’ai fait d’ailleurs une sorte de patchwork des thèmes au ch.IX de la Femme aux pieds nus.

Ma mère était une conteuse réputée. Elle ne savait ni lire ni écrire et ignorait le français. Mais si j’ai quelque talent d’écrivaine, c’est bien à elle que je le dois. Plutôt que le titre d’écrivaine, je revendiquerai celui de conteuse.

Achados & Lidos : Ce qui arrivait au lycée Notre-Dame du Nil était seulement un petit exemple de ce qui se passait au Rwanda à l’époque. Pourquoi avez-vous choisi de dérouler le roman dans un lycée, avec des personnages si jeunes ?

Scholastique Mukasonga : Si le roman n’est pas autobiographique, le lycée N-D du Nil n’a jamais existé, je me suis servie du lycée que j’ai fréquenté, Notre-Dame de Citeaux à Kigali. Le lycée est un microcosme du Rwanda des années 70 où se dessinaient les prémices du génocide de 1994. Il me permet de conserver l’unité de lieu (le lycée) l’unité de temps ((une année scolaire correspondant à la très longue saison des pluies).

Achados & Lidos : Ainsi comme dans La Femme Aux Pieds Nus, où les femmes jouent un rôle central dans le récit, dans Notre-Dame du Nil, la question du féminin est également présente. L’épisode des premières règles nous a fait ressentir le poids que nous, les femmes, portons sur nos dos concernant les préjugés de genre. Croyez-vous que les femmes écrivains aient un rôle particulier qui puisse contribuer au changement de cette réalité ?

Scholastique Mukasonga : Bien sûr, c’est le rôle des femmes écrivaines de contribuer au changement de la condition des femmes. Je rentre du Maroc et je vais le mois prochain au Nigeria où de grands festivals sont organisés sur ce thème. Je crois qu’avec les affaires d’Hollywood le thème est d’actualité!

Achados & Lidos : La colonisation et ses effets nocifs sur l’identité d’un peuple sont très présents à la lecture de Notre-Dame du Nil. Pendant des siècles, le Brésil était aussi une colonie portugaise. En lisant votre oeuvre, nous nous sommes identifiés avec plusieurs extraits dans lesquels la violence contre la culture locale était évidente. Pensez-vous qu’il soit possible de récupérer une identité perdue dans les années de domination coloniale ?

Scholastique Mukasonga : Les croyances traditionnelles ont été particulièrement éradiquées par les missionnaires. Être traité de païen était la pire injure. Notre histoire a été falsifiée, faisant des Tutsi une race à moitié blanche, les Hamites. C’est aux générations actuelles de retrouver leurs racines.

Achados & Lidos : Si d’un côté l’on peut observer la forte influence catholique sur le peuple rwandais, dans Notre-Dame du Nil, nous prenons connaissance de la culture locale. Même avec la rigide éducation catholique, les étudiantes étaient énormément attirées par les pouvoirs mystiques des anciens rois et reines, ainsi que des sorcelleries. Cela était parmi ses habitudes et exerçaient une forte portée sur ces jeunes filles. Est-ce que ce syncrétisme religieux reste encore à ce jours ?

Scholastique Mukasonga : La conversion au christianisme dans les années 1930 a été massive à la suite de celle du roi et des principaux chefs. Il fallait un certificat de baptême pour aller à l’école. Mais ma mère invoquait selon les cas, ou en même temps, la Sainte Vierge ou Ryangombe, le chef des esprits. Dans mon dernier roman Coeur Tambour, je remets en honneur une Déesse mère, Nyabingi, qui a traversé l’Atlantique et a été adoptée par les rastas jamaïcains.

Achados & Lidos : Gloriosa est la voix de l’intolérance. Son discours transmis est un écho de tout ce qu’elle a toujours entendu chez soi, surtout de son père. Quel était le message que vous désiriez transmettre à travers ce personnage qui l’on considère extrêmement fort ?

Scholastique Mukasonga : Gloriosa représente le fanatisme racial érigé en doctrine politique. Gloriosa est la synthèse de nombreuses personnes réelles que j’ai, hélas!, rencontrées.

Achados & Lidos : Contrairement à Gloriosa, Virginia était la voix qui transmettait la paix dans le lycée. Elle était toujours conciliatrice et savait maintenir des secrets et des confessions. Son personnage garde une sorte d’optimisme jusqu’au bout, malgré le fait de la situation concernant l’ethnie Tutsi devenir plus grave à chaque jour. Est-ce qu’elle représente la confiance dans l’avenir dont on a besoin même dans les périodes les plus sombres ?
Scholastique Mukasonga : Le génocide des Tutsi n’a pas anéanti le Rwanda. Un Rwanda nouveau se reconstruit. Virginia en est la préfiguration.

Achados & Lidos : Nous nous apercevons qu’au Brésil il existe un véritable intérêt croissant par la littérature africaine, spécialement par des oeuvres réalisées par des femmes. Vous et d’autres écrivains sont incontestablement très reconnues parmi nous. Pensez-vous avoir encore plus de place aujourd’hui dans le marché littéraire pour les femmes écrivains ?

Scholastique Mukasonga : La littérature africaine a beaucoup d’importance en France où la francophonie est considérée comme un bien à préserver. J’ai eu le prix Renaudot en 2012, en 2016, c’est une Marocaine qui a remporté le Goncourt. La littérature africaine et féminine tient une place importante dans la littérature française actuelle.

Achados & Lidos : Au cours de ces neuf semaines, nous avons discuté, chapitre par chapitre, sur notre site “Achados e Lidos”, de votre oeuvre Notre-Dame du Nil. Cette lecture a été formidable et nous avouons nous trouver un peu tristes de dire au revoir au lycée et à ses personnages. Pourriez-vous laisser un message aux lecteurs brésiliens, en particulier à ceux qui nous ont suivi pendant notre lecture de Notre-Dame du Nil ?

Scholastique Mukasonga : Je suis très émue de la patience que vous avez consacrée à Notre-Dame du Nil et je suis fière que le Brésil ait ainsi accueilli mes deux livres qui ont été traduits. Je garde un souvenir inoubliable de l’enthousiasme des lecteurs de Paraty et de cette soirée dans une favela de Rio. J’espère que ma courageuse éditrice pourra continuer à faire traduire et publier mes autre livres et de nombreux auteurs noirs. J’ai hâte de retourner au Brésil de rencontrer le club de lecture Achados & Lidos.

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