No Estado americano da Geórgia, Cora é propriedade da fazenda dos Randall. Marcada pela vida como escrava, ela nunca imaginou outro destino que não fosse o confinamento da fazenda, a colheita de algodão, os açoitamentos frequentes. Até que a chegada de Ceasar, criado na Virgínia por uma senhora que prometia alforriá-lo, mas que morreu sem ter o feito, muda sua perspectiva sobre o futuro.

Os Caminhos Para a Liberdade, de Colson Whitehead (Editora Harper Collins, 312 páginas), é um livro angustiante, do tipo que te faz querer ler a última página só para saber o destino da personagem principal. Até chegar lá, acompanhamos uma fantasiosa narrativa de fugas e desventuras pelas “ferrovias subterrâneas”, como os abolicionistas chamavam a rede de apoio que ajudou a esconder milhares de escravos e que no livro de Whitehead ganham materialidade, com direito a operadores de estação, maquinistas e passageiros.

O autor divide a narrativa entre personagens e estados americanos. A história começa com a raptura da avó de Cora, Ajarry, na África, a terrível travessia nos navios que transportavam escravos de um continente a outro e o sem número de vezes em que ela foi vendida, já na América.

Desde a noite da sua captura, ela fora avaliada e reavaliada, cada dia acordando no prato de uma nova balança. Saiba o seu valor e saiba o seu lugar na ordem das coisas. Escapar da servidão da fazenda era escapar dos princípios fundamentais de sua existência: impossível.

Para Cora, essa também era uma verdade inabalável, se não fosse a fuga da sua mãe, Mabel, que deixou a fazenda quando ela ainda era criança para nunca mais ser vista. No capítulo seguinte, sobre a Geórgia, Whitehead expõe as torturas físicas e psicológicas a que Cora é submetida nas fazendas de Randall, até que ela se convença a partir com Ceasar. O escritor, contudo, não se detém muito sobre a terrível violência da escravidão. Não é preciso. Com sua prosa carregada de poesia, que remete a Amada, de Toni Morrison, ele fala de servidão e liberdade em trechos memoráveis, como esse:

A música parou. A roda se abriu. Às vezes um escravo se perde num breve redemoinho de libertação. No movimento de um suave devaneio entre os sulcos da lavoura ou desenredando os mistérios de um sonho ocorrido de manhãzinha. No meio de uma música numa noite cálida de domingo. E então vinha, sempre: o grito do feitor, o chamado pra trabalhar, a sombra do senhor, o lembrete de que ela é um ser humano apenas por um minúsculo momento numa eternidade de servidão.

O título em português talvez tenha sido uma má escolha porque, na verdade, o caminho que Cora percorre não é exatamente o da liberdade. A escravidão em uma fazenda pode ficar mais distante a cada trecho percorrido, mas Cora enfrenta, a cada fuga e golpe do destino, a dura realidade de que jamais experimentaria o gosto puro da liberdade, porque as cicatrizes deixadas por seu passado não permitiriam.  

O que lhe é oferecido é sempre uma amostra. Quando ela chega à Carolina do Sul, com seus dormitórios para escravos libertados, oferta de trabalho e comida na mesa, a vida parecia tomar um rumo. Cora logo descobre, porém, que a assistência que lhe é prestada e a outros em condição semelhante é apenas subterfúgio de um outro esquema de segregação que ainda assim a privava da liberdade, se não de movimentos, de direitos. Como quando um dos médicos locais sugere que ela faça um procedimento para não ter mais filhos.

Corpos roubados cultivando terra roubada. Era um motor que não parava, sua fornalha faminta alimentada com sangue. Com as cirurgias que o dr. Stevens descrevera, pensou Cora, os brancos haviam começar a roubar futuros intencionalmente. Abrir você é arrancá-lo, ensanguentado. Porque é isso que você faz quando toma o bebê de alguém – rouba seu futuro.

A segregação, com a concepção da ideia de cidadãos de segunda classe, e o racismo deixados como herança dos anos de escravidão seriam uma marca do continente. Por isso, o título em inglês, As Ferrovias Subterrâneas (em tradução literal), é bem mais consistente. Se há um travo de esperança possível nessa narrativa fantástica é dessa rede de pessoas, que nesta obra deixa de ser uma metáfora, para tirar da escravidão milhares de pessoas.

Vencedor do prêmio Pulitzer e do Man Booker Prize de 2017, o livro apareceu também na lista de leituras do ex-presidente americano Barack Obama, para quem Os Caminhos Para a Liberdade é um lembrete sobre como a dor da escravidão passa de geração para geração. O livro também ganhou relevância pelo contexto político americano, com a ascensão de Donald Trump ao poder com uma plataforma xenófoba e preconceituosa e os latentes conflitos raciais em diversos estados.

A obra de Whitehead de fato vai muito além de um retrato da terrível crueldade da escravidão e de sonhos de fuga. O livro mostra como o racismo operava de formas diferentes e sempre cruéis por toda a geografia americana, intrínseco ao sistema econômico e político sobre o qual a jovem nação foi forajada. Não havia escape, nem caminho possível para a liberdade. As cicatrizes da segregação e da criação de cidadãos de segunda classe continuariam visíveis, ainda que alguns tentem fingir que elas não estão lá.  

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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