O Deus das Pequenas Coisas, da indiana Arundhati Roy (Companhia de Bolso, 352 páginas), poderia ser descrito como um livro sobre a relação quase siamesa entre irmãos gêmeos. Ou sobre a Casa Ayenemen, um lugar em que realidade e imaginação se misturam de forma fluída. Mas a melhor definição é da própria autora: essa é uma obra sobre as leis que determinam “quem deve ser amado, e como. E quanto”.

O livro tem como ponto de partida o retorno de Rahel, uma das metades do casal de gêmeos bivitelinos que protagoniza a narrativa, para a cidade em que nasceu, após um longo tempo distante da Índia. Essa volta é significativa porque é a partir dos fragmentos da história que persistem em móveis, objetos e paredes de sua antiga casa que a escritora nos guiará até o dia fatídico em que tudo mudou. Logo na primeira página, Arundhati Roy nos encanta com seu poder descritivo, sua capacidade de criar imagens fortes e vívidas, nos deixando familiarizados com o ambiente que ela busca retratar:

Maio em Ayemenem é um mês quente, parado. Os dias são longos e úmidos. O rio encolhe, e corvos pretos se banqueteiam com belas mangas em árvores imóveis, verde-empoeiradas. Bananas vermelhas amadurecem. Jacas explodem. Varejeiras dissolutas zunem vagabundas no ar perfumado. Depois se estatelam contra vidraças transparentes e morrem, totalmente enganas, ao sol. (…) Mas no começo de junho irrompe a monção sudoeste, e vem três meses de vento e água com curtos intervalos de sol duro e brilhante em que crianças excitadas aproveitam pra brincar.

Conforme Rahel explora o entorno da casa, ela nos apresenta o “microcosmo” composto por sua família, uma representação da Índia presa entre tentativas de modernização e velhos preconceitos arraigados na sociedade. No mosaico familiar composto pela mãe divorciada, pelo tio sem rumo, por uma avó de personalidade forte e por uma tia cujos sonhos desabaram, um a um, até que só sobrasse o rancor e a inveja, vamos conhecendo os personagens decisivos para a noite do Terror, como é descrito o dia em que “tudo mudou”.

A chegada de Sophie Mol, filha do tio Chacko, inglesa de peles claras e cabelo afogueado, estará indelevelmente associada à esses acontecimentos, mas é apenas aos poucos que a autora constrói esse quebra-cabeça.

Antes de tudo, ela parece querer nos mostrar que o mais insignificante dos acontecimentos, a menor das vergonhas, a mais banal conversa, podem levar a tragédias familiares sem precedentes.

No entanto, sua escrita quase lírica, em que substantivos viram verbos, em que palavras e termos se repetem, em que o onírico estado de ser da infância se confronta com a dureza crua do mundo dos adultos, pode ser um pouco cansativa e arrastada em alguns momentos, até que a narrativa engrene, na metade final do livro. A leitura, no entanto, continua a fluir, especialmente por causa da capacidade de Roy de elaborar imagens pungentes em metáforas que poderiam ser banais:

O silêncio encheu o carro como uma esponja encharcada. Derrotado cortou como uma faca numa coisa macia. O sol brilhava com um suspiro estremecido. Era esse o problema das famílias. Assim como médicos hostis, elas sabiam exatamente onde machucar.

Atravessar a primeira parte, mais morosa, vale a pena pelo desfecho triste, mas muito belo dessa narrativa, que levou a autora a ser a primeira indiana premiada com o Man Booker Prize, em 1987. Ao falar de quem pode amar a quem, e quanto – e o potencial trágico de se romper essas regras não-escritas, Roy constroi um lindo romance sobre o arcaico sistema de castas indiano, que prevalece até hoje, em um paradoxo que o “mundo não discute, não questiona”, como declarou a autora.

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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